Velho Padre.


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                                 Tiago: Segundo dia. - Capítulo 4.     



          Noite após noite, eu tenho o mesmo pesadelo e cada vez fica pior. Estou em um lugar escuro, onde estou completamente imóvel devido ao medo que sinto, sempre tem uma criatura à espreita, vigiando, estudando, e ela sempre avança na minha direção, em seu olhar vazio flutua uma sede de sangue, ela quer me matar, mas sempre quando ela avança, acordo sempre com a doce e sonora voz da minha falecida esposa, mas ela não está lá e sim outra coisa sentada na ponta da minha cama, a cada dia percebo que ela está virando para mim, me pergunto o que vai acontecer quando ela virar totalmente, estou com medo de dormir. 

... 

          São 2 horas da manhã, já faz dois dias que não durmo, sinto que se eu deitar não irei mais acordar, não que me importe em morrer, mais não quero ser morto por aquilo. Após tomar alguns comprimidos para manter minha mente ocupada, percebi que não tinha nenhum tipo de bebida em casa, resolvi ir à rua para comprar, mas naquela hora seria difícil encontrar algum estabelecimento aberto. Deixei o meu apartamento decadente, cheio de sujeira espalhada, roupas, restos de comida, vidros de bebidas vazios e desci. O meu apartamento fica em uma área nobre da cidade, lembro-me de quando o compramos, minha esposa achava divino aquele charmoso bairro que fica perto da orla do mar, de dia tudo claro e movimentado, pessoas praticando esportes, correndo a beira mar, tudo parecia muito divertido, a noite as luzes coloridas deixavam o lugar lindo e agradável e um clima muito gostoso para fazer um passeio romântico na praia ou curtir um dos ótimos restaurantes que haviam por ali, mas hoje, não vejo graça em nada, para mim tudo está em preto e branco. 

          Após andar algumas quadras encontrei um bar que ainda estava aberto, pelo movimento, não parecia que iria fechar tão cedo. Entrei e pedi uma dose de uísque. Eu olhava para todas aquelas pessoas ao meu redor, se divertindo, rindo, conversando coisas idiotas que apenas um idiota acharia graça, mas lembro-me bem, eu já fui assim. Sempre fui muito bem humorado, cheio de amigos ao redor, era o centro das atenções em qualquer lugar que eu fosse, Erica fica muito enciumada, dizia que todas as mulheres ficavam me dando mole, apesar de nunca ter visto nada, também não teria como eu ver, eu tinha a mulher mais linda do mundo ao meu lado, nenhuma outra chegaria aos pés dela. Fiquei ali sentado apreciando a minha bebida e recordando nossos bons tempos, nossos namoricos ao ar livre e pensando em todas as pessoas que diziam éramos especiais, foi quando uma mulher se aproximou. Morena, alta, bonita pelo que vi de relance.

          - Oi, tudo bem? – Disse.

          Olhei para ela com um olhar bastante desinteressado e respondi simplesmente, um quase inaudível e único Oi. Não que eu quisesse ser grosseiro, mas simplesmente, nada me interessava, nada.

          - Nossa, ficou gelado de repente, acho que vou tomar uma dose igual a sua para ver se me esquenta um pouco. - Falou a mulher tentando disfarçar o quanto ficou sem jeito.

          - Qual é o seu nome? – Insistindo em estabelecer uma conversa.

          Não respondi nada, não estava interessado em conversa fiada, só queria encher a minha cara e depois ir para casa chorar as minhas magoas. 

          - Bom, se você não quer falar seu nome tudo bem, mas não faz bem um homem bonito como você se afogar na bebida, ela não vai resolver os seus problemas. Disse – Aliais, se um homem como você só está interessado em beber assim, é como dizem, é por causa de uma mul...

          - Não me lembro de ter pedido sua opinião. – Cortei secamente e lançando um olhar de canto de olho.

          Dessa vez ela não pareceu se incomodar, me fitou com atenção, deu um leve sorriso, virou para frente e falou.

          - Realmente você não pediu, mas sei que você está com enormes problemas, Problemas muito sérios, não é à toa que ele está te seguindo. - Disse.

- Ele? – Perguntei.

     Ela apontou para um canto escuro da sala, foi quando percebi alguma coisa encolhida no canto de cor acinzentada, magra e bastante ossuda e membros avantajados, bem maiores e fora dos padrões da normalidade. Tomei um susto ao reconhecer aquilo. A criatura que ficava na minha cama estava me seguindo. Levantei do banco com um gesto brusco, derrubando todos copos próximos do balcão, muitas pessoas me olharam desconfiadas e outras até assustadas tentando ver o que eu estava vendo, mas o estranho era que ninguém parecia ver aquela coisa, só eu e aquela moça. 

          - Quem é v.... – Perguntei de supetão.

          Ela não estava mais ali, olhei ao redor tentado encontra-la, não estava em nenhum lugar a vista naquele bar, perguntei ao barman se tinha visto a onde ela tinha ido, fiquei muito surpreso e confuso quando ele disse que estava sentado ali sozinho desde que cheguei. Levantei com pressa, deixei uma grana em cima do balcão e sai dali o mais rápido possível. Quando virei a primeira esquina da rua, me dei contato que onde eu ia à criatura me seguia, ela estava ali, se esgueirando pelos cantos escuros, encolhida em qualquer lugar onde pudesse ficar escondida, as pessoas passavam ao seu lado e não viam nada e a criatura não parecia se importar com outras as pessoas, ela estava espera de uma oportunidade para me pegar. 

          Fiquei desesperado, aquilo não era um sonho, não era uma alucinação, tinha que ter significado. Ainda queria acreditar que aquela criatura fosse fruto apenas da minha imaginação, nesse momento corri sem olhar para onde, não entendia porque isso estava acontecendo. Eu estava sendo bombardeado por tantas perguntas sem respostas que mal vi por onde corria, quando dei por mim, estava na frente de uma enorme catedral. Eu não tinha motivos para entrar ali, se existia um ser misericordioso que protege os humanos do céu, eu achava que não estava ali, mas algo chamou minha atenção, algo escrito em uma pequena placa: 

          "Venham a mim, todos os que estão cansados e sobrecarregados, e eu darei descanso  a vocês. Tomem sobre o meu jugo e aprendam de mim, pois sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão descanso por suas almas. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve. - Matheus 11: 28 -30."

          Senti como se fosse um recado, por um momento esqueci que eu estava sendo perseguido e resolvi entrar naquela igreja. As portas da frente estavam trancadas, mas dava para ver que uma fraca luz emanava pelo vidro da janela, não esperava que alguém estivesse acordado naquele momento, talvez fosse apenas algumas velas, mas mesmo assim eu bati. Bati uma três vezes e ninguém respondeu, bati mais algumas vezes e nada, após algum tempo resolvi desistir, mas quando estava descendo os poucos degraus que levavam a porta da igreja, uma voz interior me fez tentar outra vez. Corri e bati o mais forte que eu podia com ambas as mãos, sem perceber eu gritava para que abrissem a porta, praticamente suplicando por ajuda. 

          Talvez fosse o destino ou acaso, mas desta vez, alguém me ouviu, um velho barrigudo e de túnica amarronzada abriu a porta, parecia um franciscano. O Homem não perguntou o que eu queria, simplesmente passou direto por mim descendo a pequena escada, olhou para esquerda e depois para a direita, fez o sinal da cruz e talvez uma breve reza e voltou já me segurando pelo braço e conduzindo-me ao interior da igreja. 

          - Você está com problemas meu jovem. – Disse o padre.
          - acho que estou. – Respondi.  
          - Eu não perguntei, eu afirmei. – Disse. – Não preciso ver o que é, mas sei que algo está te seguindo, corrigindo, algumas coisas estão te seguindo. 

          Ele disse que dentro do templo eu estaria seguro, pois era um lugar sagrado, e o que estava atrás de mim, iria ficar lá fora, me esperando. Passei à noite na igreja, o padre me deixou ficar em um dos bancos, não sei em qual momento adormeci, e não lembro exatamente o que aconteceu, mas quando acordei, ele estava sentado ao meu lado, me assustei de início e levantando de supetão, por um momento tentei correr, mas percebi que era o padre sentado ao meu lado e não a criatura pálida e ossuda. Ver o padre ao meu lado me pegou de surpresa, mais do que qualquer outra coisa. Aos poucos acalmei minha respiração, o ritmo do meu batimento foi normalizando. O padre me olhava com um pequeno sorriso e um olhar tranquilo, sentei ao seu lado e prestei mais atenção para aquela figura pequenina, barriguda e careca. Ele estava com um semblante muito cansado, entendi que ele não havia saído do meu lado durante toda a noite, ficou me guardando, me protegendo e rezando por mim até o amanhecer.

          - Bom dia jovem, se sente melhor? – Perguntou. – Espero que não esteja com muitas dores por causa do banco.
          - Sim, eu dormi bem, na verdade, praticamente desmaiei. – Realmente eu estava falando a verdade, há dias que eu não dormia e graças a isso, nem percebi o quão duro ou desconfortável era o banco. 
          - Fico feliz em saber, vem, vamos tomar café e conversar sobre o motivo que nosso senhor te trouxe aqui. – Disse o padre.

          Fomos até uma pequena copa que ficava atrás do púlpito, era simples, havia uma pequena mesa redonda, uma geladeira média, um fogão pequeno e alguns armários embutidos. Em poucos minutos o doce aroma do café quentinho já tomava conta do lugar, ele preparou também um suco e em cima da mesa jazia uma forma com pães caseiros, uma vasilha de manteiga, algumas frutas e um bolo já partido. Enquanto tomávamos café, contei toda a minha história, desde o falecimento da minha esposa, sobre a criatura e até o momento que cheguei na igreja. O padre ficou quieto durante um tempo, estava ponderando sobre tudo, após levantou-se e sem dar muitas explicações, pediu que o esperasse ali, e saiu pela sacristia. Pouco tempo depois voltou, estava segurando um livro grande e de aparência velha, colocou sobre a mesa e começou a folheá-lo até parar em uma página e apontar para mim. 


          - Foi isso que você viu? – Perguntou.

          Olhei para o livro, e nele tinha o desenho em preto e branco de uma criatura sentada no que aparentava ser a ponta de uma cama, magra, ossuda de membros anormais, olhos totalmente negros. Sem dúvidas era aquilo que me seguia, olhei para o padre e assenti com a cabeça. 

          - Meu jovem, o que você viu na sua cama é um demônio muito perigoso, ele se chama rake, há relatos da aparições e ataques desta criatura por todo o mundo. 

          O padre começou a ler em voz alta a descrição contida no livro: 

          “Ela aparece quando as pessoas estão dormindo, a pessoa que é escolhida como vítima passa a ter algum tipo de ligação direta com a criatura. Tem pessoas que ficam loucas só de senti-la. Na primeira aparição a vítima dorme sente a presença de alguma coisa, mas quando acordava não via nada. Na segunda noite, ela dorme e passa a ver o formato da criatura sentada na borda. Na terceira noite, ouvia a criatura falar algo incompreensível, na quarta noite é o dia da morte. A partir desta noite, quando a vítima acorda e ver a criatura, ela será morta de uma forma horrível”.

          Senti um nó na garganta e um calafrio tomou conta do meu corpo, mas ao pensar nisso, não fazia sentindo algum toda essa história, afinal, estou vivo.

          - Se ele mata a vítima depois da quarta noite, porque ele não me matou? – Perguntei – Afinal, há meses que ele está me assombrando.
          - Não se sabe exatamente como ele escolhe ou mata as vítimas, mas a pessoa escolhida nem sempre é atacada de imediato, de acordo com os registros, a vítima só é atacada se acordar durante a noite do quarto dia e o ver. Mas no seu caso...

          O padre parou de repente, puxou a gola da minha camisa e tocou em um ponto entre o trapézio e o meu pescoço, me senti uma pequena dor na região, me afastei e olhei meio assustado.

          - Quem disse que você não foi atacado? E esta marca ai? – Perguntou. – Tire sua camisa.
          - O quê? – Perguntei.
          - Anda rapaz, tire sua camisa. – Falou seriamente.

          Tirei a camisa sem entender muito, mas quando me dei conta, estava cheio de hematomas, contusões e arranhões por todo o meu corpo, não sei como não tinha percebido, mas parecia que havia levado uma surra, abaixei a calça, ficando só de cueca, minhas pernas também estavam todas marcadas, mas o que me assustou, não havia sido a quantidade de machucados, mas apenas um em especial. Um enorme hematoma em formato de mão, marcado em minha perna esquerda. O padre ficou inquieto, ele parecia está juntando as peças, realmente ele estava. 

          - Você disse que tem sonhado com ele? – Enfim perguntou.
          - Assenti com um movimento. – Respondi.
          - E se o que você me contou não foi apenas um sonho... e sim uma das maneiras que ele ataca as vítimas? – O padre gesticulava, combinando os gestos com o que dizia – E se toda vez que ela tentava te atacar algo impedia? – O rosto do padre se iluminou. – A voz? Ela te acordou todas as noites, não foi? 
          - Eu ouvi a voz da minha esposa me chamando. – Na hora entendi o que ele queria dizer. – Isso é           impossível, ela está morta, e os mortos não se comunicam com os vivos, ainda mais tentar me proteger. 
          - Homem de pouca fé. – Falou para si. – Mesmo com tudo isso acontecendo, você ainda pensa que seja impossível? Disse. – Sua esposa vem te protegendo todo este tempo e você não percebeu, não sei dizer como ela faz isso, mas o caminho do senhor e difícil de entender e se ela está fazendo isso é porque ele quer também.
          - Padre, por muito tempo eu excluí Deus da minha vida, neguei qualquer evidencia de sua existência, abominei seu nome tantas vezes, realmente eu desisti dele, então por quê ele iria me proteger? – Falei com um tom de tristeza.
- Rapaz, você pode ter abandonado cristo, mas ele não abandonou você. – Disse. – Entenda isso de uma vez.

...

          Aquela conversa rebombou em minha mente, passei tanto tempo culpando Deus por todas as desgraças passei, o culpei por ter perdido minha esposa, para mim, ele tinha a abandonado quando mais ela precisou, ele não a respondeu quando chamava seu nome no que parecia ser um de seus acessos de loucura, e não me respondeu quando chorei baixinho em um canto, implorando para salvar minha esposa e também não respondeu quando gritei porquê ele havia levado uma pessoa tão boa e me deixado sozinho. Frequentemente questionei porque levar as pessoas boas em quanto as más ficam na terra, e mesmo carregando essa magoa, acabei vindo parar em sua casa.

          Enquanto eu tinha explosões de pensamentos, Pr. Durval falou. – Era esse o nome do dele.

          - Existe uma passagem na bíblia, que eu gosto muito e tem a ver com o que você está sentindo. – Disse.

          “Nesta vida sem sentido eu já vi de tudo: um justo que morreu apesar da sua justiça, e um ímpio que teve vida longa apesar da sua impiedade. – Eclesiastes”

          - Eu também não entendo o porquê isso ocorre meu filho, mas uma coisa é certa, Deus escreve certo por linhas tortas. – Disse. – E tenho certeza que existe um motivo para isso na sua vida, afinal, não trouxe você aqui por nada. Ele te trouxe para o lugar certo, eu sou um padre que sabe o sabe lidar com essas criaturas. – Disse olhando em meus olhos. – Eu vou ensinar a você a afastar o mal, mas isso vai depender da sua fé. Bom, você não tem escolha quanto a isso, você já está amaldiçoado, a escuridão vai te perseguir até você morrer, ou você aprende a lidar ou sucumbirá.

          Não tive tempo de escolher o que queria, na verdade, como ele deixou claro, não havia escolha para mim, mas se houvesse, eu teria escolhido aprender, eu devia isso a ela.

...

          Durval era um padre excêntrico, ele era baixo, barrigudo, tinha uma barba castanha bem cheia e era careca, mas aquele homem escondia muita coisa por de baixo da batina, quando falava, transbordava confiança. É o tipo de homem que tem conhecimento sobre muitas coisas, inclusive sobre o mundo sombrio, sabia como se defender e contra-atacar a escuridão de diversas maneiras. Ele começou meu treinamento pouco tempo depois que o conheci e desde então não sai mais da igreja, eu deveria abandonar a minha vida antiga e me entregar em uma nova, quando mais eu conhecia sobre o caminho do senhor, mais me entregava de corpo, mente e alma. 
Meu primeiro passo do treinamento foi aprender a me acostumar com a escuridão, ele me levou para o subsolo da igreja, onde existia um grande corredor, de acordo com Durval, nada é o que parece ser. Ali tinha diversas salas, cada uma para um tipo de treinamento. Tinha a sala das escrituras, onde eu passava horas lendo e aprendendo a interpretar a palavra do senhor, tinha uma sala com vários equipamentos de academia com pesos, alteres e outras coisas, mas de acordo com a forma física do padre e a poeira em cima dos equipamentos, essa sala não era utilizada a muito tempo, havia uma sala de combate, aparentemente Durval, sabia alguma coisa de artes marciais, e por fim, a sala escura, seria ali onde eu iria enfrentar meus medos e aprender a lutar com as trevas.

          Percebi que a sala era vazia, com exceção de uma cadeira, uma câmera e caixas de alto-falantes nos cantos do teto, atrás da cadeira, havia um vidro escuro, aparentemente seria um ponto de observação. 
- Antes de começar o seu treinamento, você tem que enfrentar o seu medo. Disse Durval. - Vou prender você naquela cadeira e ficar te observando atrás daquele vidro – Apontou para o canto. – A sala vai ficar completamente escura, você não poderá me ver, mas eu vejo tudo, existe uma câmera de visão noturna, então não se preocupe se acontecer algo, eu ascendo à luz e tiro você de imediato, certo?

          - Certo. – Respondi.

          Pr. Durval me prendeu na cadeira e após saiu, após uns dois minutos, sua voz soou nos alto-falantes. 

          - Tiago, você está me ouvindo? 

          Respondi que sim, assentindo com a cabeça. 

          - Não se preocupe rapaz, a sala e equipada com microfones, tudo o que se falar dentro eu vou ouvir. – Aquilo não estava me acalmando, pensei. - Mas então, você está pronto? 
          - Sim. – Dessa vez respondi com firmeza.

One Response to “Velho Padre.”

  1. Muito interessante... A ideia é muito boa, o texto prende o leitor e é de fácil assimilação, deixando um gostinho de suspense e curiosidade para saber o que irá acontecer com o personagem Thiago. Gostei, e vou acompanhar. Parabéns!

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