O despertar de um velho. - Capítulo 9.
Fiquei surpreso ao ouvir como
tudo isso começou, não era apenas uma questão de eu ser um humano
excepcional, mas era uma questão mais delicada do que eu havia pensado, entendi
porque o velho Ferraz, não havia contado tudo desde o início, afinal, quem em
sã consciência acreditaria em ser algum tipo de descendente de anjo? Mas com sinceridade, o que mais me
surpreendeu foi em saber que estamos perdendo. Sempre imaginei que o bem venceria
o mal, que a luz iria se sobressair sob à escuridão, mas o que fazemos quando a
realidade é tão diferente do imaginado? A verdade é que nós tentamos ser
otimistas, se pararmos para pensar um pouco, nesse exato momento em que estou
pensando isso, tem várias pessoas fazendo maldades pelo mundo, pensamentos de
inveja, vingança, traição, rancor, assassinato, abusos e tantas outras coisas
assolam a mente de muitos seres humanos e graças a isso, a escuridão cresce
cada vez mais. É claro que não podemos generalizar, existem pessoas boas
também, mas é mais fácil e rápido fazermos o errado do que o certo. Se estamos
nessa situação à culpa é nossa, exclusivamente nossa, afinal, quantas vezes
deixamos de pensar no bem do próximo para pensarmos em nosso próprio umbigo?
Perdi as contas de quantas vezes fiz isso.
...
De acordo com Ferraz, os demônios
nascem da maldade humana, quando mais maldades acontecem ao redor do mundo,
mais demônios surgem, mais almas são corrompidas, e fica cada vez mais difícil
manter o equilíbrio. O que acontece se perdemos? O apocalipse é claro, o fim da
humanidade como à conhecemos.
...
Hoje nós vamos abandonar a
cidade, aqui não é um lugar seguro. Vamos encontrar a Ordem dos caçadores, e eu
vou ter que me unir a eles. A ordem existe desde que os arcanjos passaram a
lutar ao nosso lado e vem resistindo até hoje. No passado existiam as rosas purpuras,
a tríade vermelha, a cidade branca e muitas outras, todas lideradas por algum
caçador mestre, mas infelizmente, todas caíram. Somente a ordem continua de pé.
Também existem os solitários, caçadores que preferem agir sozinhos, por motivo
próprios, alguns que decidiram sair da ordem ou porque foram expulsos por ela.
Esses normalmente usam métodos pouco convencionais e até meio radicais. Na
ordem vou conhecer cada um deles e outros iguais a mim, aprender a lutar e utilizar meus dons.
Saí do quarto e encontrei Ferraz
no quartinho dos fundos, estava parado em frente a parede de fotos e linhas coloridas, parecia estar lembrando
do passado.
- Estou pronto Ferraz – Disse,
mas ele não se virou. – Ferraz, o que é tudo isso?
- Isso é toda a minha história,
tudo o que decora essa parede é o motivo que estou aqui hoje rapaz. – Disse. –
Eu não sou como você, não nasci como você, não tenho nenhum dom especial, mas
estou aqui.
- O que aconteceu? – Perguntei. –
O velho sentou na cadeira com os olhos cheios de lagrimas, olhei para a mesa e
percebi que estava bebendo, percebi que o motivo da casa ser cheia de latas de
cervejas jogadas pelos cantos, era porque ele bebia para tentar esquecer de alguma
coisa.
- Rapaz, eu nunca acreditei em
Deus. Achava tudo uma baboseira, em meu pequeno discernimento, essas histórias
não passavam de um romance escrito por alguém, a minha ignorância custou a vida
de todos os que eu amava. – Sua voz ficou embargada. – Zombei de quem não
deveria e brinquei com quem não deveria também.
- Teve uma época que me
envolvi com coisas erradas, comecei a ler aquilo que não deveria ser lido,
quando percebi estava brincando de fazer magias negras, evocar espíritos, amaldiçoar as pessoas e o resultado foi que
libertei um demônio, uma vez liberto ele destruiu minha família, minha esposa,
minhas filhas. – Ele parou um momento, e tirou da carteira uma foto de uma
mulher com duas crianças. Ferraz começou a chorar, sinceramente, não sabia o
que dizer, nem me atrevi a perguntar como elas morreram ou o que as matou,
esperei calado.
– Esse demônio as matou
da forma mais violenta possível. Após mais uma noite de brincadeiras com
magias e invocações, voltei para casa. Abri a porta da sala e estava tudo quebrado, da
televisão saia um chiado horrível e passava imagens estáticas. De princípio,
pensei que era um assalto, meu coração disparou ao pensar nas minhas filhas, peguei a primeira coisa que vi
e que poderia servir como arma, um guarda-chuva longo e pontudo. Não me preocupei com
cautela, gritei o nome da minha esposa e minhas filhas, um por um, não tive
resposta, corri pelo corredor e subi a escada pulando os degraus, no topo
escorreguei em alguma coisa e bati a cabeça no solo de madeira, olhei com
atenção e tinha sangue por todo o lugar, no desespero abri a porta do quarto de
minhas filhas e elas não estavam lá, também estava coberto de sangue por todos
os lados, parede, teto camas, tanto sangue... Ouvi um barulho vindo do meu
quarto e da minha esposa, não pensei duas vezes, levantei e corri cegamente
arrebentando a porta com o ombro. O que vi lá dentro foi a pior imagem que
alguém poderia ver, e a que vai me assombrar até o dia da minha morte. Os
corpos das minhas filhas estavam destroçados logo na entrada, as partes estavam jogadas por todos os cantos, cai de joelhos em completo desespero, as peguei
em meu colo e tentei reanima-las, minha consciência sabia que era em vão, mas
meu coração não queria acreditar nisso. – Nesse momento Ferraz chorava muito,
coloquei minha mão em seu ombro, não queria que ele continuasse se torturando
dessa maneira, ele não merecia isso. Mas mesmo assim, ele continuou.
– Ouvi uma
risada, e alguém falou algo indecifrável. A silhueta de uma mulher apareceu na
sombra, Maria? – Chamei o nome da minha esposa. – O que você fez? Ela não respondeu, meus olhos estavam cheios
de lagrimas e não conseguia ver direito por conta da vista embaçada, levantei e
limpei o rosto, quando olhei novamente consegui ver algo que não tinha visto
antes, o corpo da minha esposa estava coberto de sangue, estava sem seu braço esquerdo e sem sua cabeça, gritei horrorizado, mais acima,
uma criatura pendurada no canto do teto e de ponta a cabeça, me olhava com
orbitas vazias e um largo sorriso enegrecido, sua pele completamente escura,
com vários espinhos saindo do corpo, longos membros e longas garras em seus pés
e mãos, pareciam patas de aranha de tão enormes que eram, sua enorme língua jogada
no canto de sua boca, ainda pingando o sangue da minha família. Ao me ver a
criatura mordeu o ombro de minha esposa arrancando um pedaço de sua carne, após largou o seu
corpo e me encarou.
O medo me fez andar para trás, tropecei na perna de minha
filha e caí igual um pedaço de merda, a criatura foi descendo pela parede, com
o seu dorso e rosto virados para frente, não tirava os olhos de mim. Eu seria o
próximo, tateei ao lado procurando o guarda-chuva que derrubei quando entrei,
não tive muito tempo de toca-lo. A criatura voou em minha direção, e com um
movimento de puro reflexo misturado com ódio, acertei seu rosto com o cabo,
fazendo a criatura perder o equilíbrio, mas em poucos segundos já estava em pé e sorrindo para mim novamente, corri para fora quarto do e me lancei no
corredor, a criatura arrebentou o resto da porta e se espatifou na parede, me
perseguiu pela parede com como quem engatinhasse de costas, mesmo naquela
posição impossível, não deixava de ser rápida ou me olhar. Desci a escadas e entrei na cozinha, o espaço mais
amplo da casa, procurei uma enorme faca de caça que ficava guardada no armário,
mal tive tempo de pegar a faca, quando percebi a criatura já estava em cima de
mim. Levei uma porrada no peito que me fez voar metade do local, bati de costas
no fogão, sentindo uma dor lancinante por todo o corpo. Olhei para baixo e
percebi que estava coberto por sangue, as patas da criatura cortavam como uma
espada afiada, só tive tempo de deixar-me cair para o lado antes que suas
afiadas patas perfurassem o fogão, como faca quente na manteiga, percebi que
não havia largado a faca, encravei aquele pedaço de metal de 30 centímetros no
dorso direito daquela coisa, jorrou um sangue escuro, que cobriu todo o meu
rosto, sem pensar, tirei e enfiei novamente na criatura, jorrando
mais sangue, ela urrou de dor, enfiou uma das garras em meu ombro direito,
levantou-me com tanta facilidade, e com a mesma me jogou contra a parede. A
criatura se contorcia pela cozinha, tentando tirar a faca encravada em seu
corpo, ao conseguir, jogou longe, percebi que de forma quase que instantânea
suas feridas passaram a ser curadas.
- Quem é você? – Balbuciei.
- eduxit me et vos hic. – Disse a criatura. – venio nam prandium!
Não havia entendido o que disse ou qual linga usou, mas sabia porque estava ali, era por minha
causa. A criatura aproximou o rosto do meu, não tirava aquele sorriso malicioso
da cara, pensei que era o meu fim, então fechei os olhos, queria que fosse
rápido.
- Não vou matar agora. Vou fazer sofrer e quando estiver no poço, sua alma pegarei.
A criatura falou em meu idioma, fiquei perplexo. Nesse momento a criatura se afastou, e bem devagar aproximou-se do canto
da cozinha, encostou em uma das sombras e da mesma maneira que apareceu sumiu.
Fiquei encarando aquele lugar durante alguns minutos, aquilo devia ser um
sonho, tinha que ser um sonho, eu queria que fosse, mas não era. Após alguns
tempo, levantei e voltei para o quarto, dessa vez não consegui entrar, fiquei
ajoelhado na porta, perplexo com a imagem. Não sei quanto tempo fiquei
encarando o corpo das minhas meninas, de longe ouvi um som de sirene, algum
vizinho assustado com o barulho e gritos resolveu chamar a polícia. Após algum
tempo ouvi som de passos pela escada.
- Parado! Parado! – Gritavam. –
Mãos para cima, senhor.
Ao me verem, ficaram
completamente assustados com minha aparência, um dos policiais me empurrou para
o lado e entrou no quarto, só ouvi o homem gritar aterrorizado e sons de alguém
vomitando. O homem saiu do quarto, olhou para mim e me chamou de monstro, a
última coisa que lembro foi a imagem da sola de uma bota acertando o meu rosto.
Mas tarde acordei em uma cela imunda, onde todos me chamavam de assassino, tentei
contar a verdade mas ninguém acreditou, os jornais de todo o país chamavam-me
de “ O esfolador”, por causa da grande comoção pública para o meu caso, fui
levado a júri e com menos de 1 mês fui a julgamento, onde massacraram todas as
minhas defesas, fui declarado culpado, e o júri entendeu que eu era não
psicologicamente saudável, fui condenado a cumprir pena em regime fechado em
um hospital psiquiátrico de alta segurança.
Sai algemado
do tribunal com destino direto ao hospital psiquiátrico, no caminho as pessoas
me xingavam de monstro, assassino, demônio. Alguns diziam que eu arderia no
inferno pelo crime que cometi e outros gritavam pela pena de morte, passei de
cabeça baixa pela multidão de gente que era contida por uma barreira policial
para que não me linchassem ou me matasse ali mesmo, ninguém acreditava em mim,
até que alguém me puxou pelo ombro, virei para a direção esperando ser
agredido, mas para minha surpresa, uma mulher me segurava, ela vestia uma
blusa preta, cabelos castanhos claros e tinha um rosto bonito, mas seu
semblante era sofrido.
- Mantenha
sua cabeça erguida, nós acreditamos em você, ouviu bem? Nós acreditamos em você.
– Disse a mulher, antes que eu fosse puxado bruscamente para o carro
de transporte.
Aquilo me
pegou de surpresa, mas antes que eu entrasse no carro, ouvi ela gritar
novamente.
- Nós acreditamos em você. – O grito dela era suprimido por todos
os outros que pediam minha condenação, falsos moralistas e justiceiros que só
acreditam naquilo que esta aparentemente amostra, mas não se dão o trabalho de
verificar o outro lado da moeda. Mas aquelas pessoas não estavam preocupadas
com o que aquela mulher gritava, apenas com a falsa impressão que eles tinham
de que estavam me julgando corretamente.
Sempre odiei
esse tipo de pessoa, esses que julgam alguém sem ao menos
conhecer você. Pessoas que tem um “pré-conceito” sobre alguém, sem no minimo saber sua idade
seu sobrenome, seu signo ou seu prato favorito. Pessoas que apenas te olham e acham que você é o pior tipo de pessoa existente no mundo, mas dessa vez, essas pessoas sabiam ao menos o meu sobrenome. Ferraz,
o homem conhecido como “O esfolador”.
A porta
traseira do furgão se fechou, a única coisa que vi foi a multidão mais alvoraçada
tentando derrubar a barricada e os pobres policiais gritando palavras de ordem
para aquele mar de pessoas enfurecidas.
...
Os dois guardas que estavam me
guiando ao sanatório não paravam de caçoar da minha cara, diziam que eu iria
ficar lá até morrer, que fariam experiências terríveis comigo, que abririam o
meu cérebro e o usariam para treinamento dos novos psiquiatras. Aquelas
palavras não me importavam em nada, só pensava na minha família massacrada, na
criatura que as matou e nas palavras daquela mulher. Nós acreditamos em você!
Foi o que ela disse, mas nós quem?
Minha cabeça
era uma mistura de pensamentos e meu coração uma mistura de sentimentos, o mais
forte deles era a dor da perda que era acompanhada pelo sentimento de vingança
em pé de igualdade. Ouvi uma batida na lateral direita do carro, logo ouviu-se
outra, um grito veio da cabine do motorista, mais uma nova batida, dessa vez do
teto do veículo. Os guardas gritavam desesperados, perguntavam o que era isso, o que é isso. Tentei olhar pela portinhola, mas não conseguia manter o equilíbrio.
- O que está
acontecendo aí, me responde droga! – Gritei antes de cair no chão do veículo.
- Cale sua
boca porra. – Gritou um policial.
De repente, ouvi tiros, um tiro,
dois tiros, três tiros, alguém estava descarregando o pente de uma pistola em
alguma coisa que seguia o veículo, mais uma vez fiquei desesperado, seja o que fosse, os
policiais estavam contra-atacando. Pega a escopeta, um deles gritou.
Um barulho alto como se fosse um
trovão, soou dentro do veículo, mais tiros sequenciados vindos da cabine.
- É muito rápido, não consigo
mirar. – Gritou um guarde.
- Senta na
janela e atira por cima do capô. – Gritou o motorista.
Não conseguia acompanhar toda a ação, percebi que o guarda que
havia projetado seu corpo para fora, estava atirando em todas as direções. O
que é que fosse nosso perseguidor era rápido. De repente algo pesado caiu no
teto do veículo, ouvi mais uma sequência de tiros e em seguida o grito do
policial, percebi que esse começou a se debater dentro da cabine, o policial
tentava pedir ajuda, mas seu grito de socorro parecia estar se afogando goela abaixo, o
motorista em desespero tentou segurar as pernas do seu amigo, mas era tarde
demais, em segundos o policial foi arrancando do interior do veículo igual a um
boneco de pano, seu companheiro gritava igual um louco.
- Se acalma
cara, se acalma, você vai perder o controle do veículo e nós vamos morrer
também.
- Eles estão
em todos os lados, nós vamos morrer, nós vamos morrer. – Gritava o guarda. – Em
um momento de insanidade o homem começou a gargalhar como se assistisse a peça
mais engraçada do mundo. Nesse momento já não queria saber o que estava
acontecendo, o que estava nos perseguindo, em minha mente vinha somente uma
vontade, sobreviver.
Ouvi um
barulho na traseira do veículo, olhei para trás e percebi que vinha da porta.
Encostei minhas costas na parede que separava a cabine do motorista e o fundo,
mais uma batida forte e outra e outra. A porta era puxada com violência, pela
força não tinha como aguentar. Após mais alguns puxões, a porta for arrancada
com dobradiça e tudo, durante alguns segundos fiquei encarando o asfalto que
passava em alta velocidade, até que uma criatura negra de pelos ouriçados pulou
no fundo do furgão. Caí de bunda, incrédulo com o que estava vendo, a criatura
levantou a cabeça e consegui perceber toda a sua dimensão, um lobo totalmente
negro, olhos vermelhos sangue, respiração pesada, pelos selvagens e oiriçados, dentes
arreganhados e rosnando na minha direção, o animal ocupou todo o espaço do
fundo do furgão, não tinha maneira alguma de escapar. A criatura rosnava em
minha direção, baba pingava entre suas pressas empapando o chão.
Levantei até
a portinhola e gritei pelo policial, esse estava tão enlouquecido que sequer ouvia
meus gritos, foi nesse instante que tudo mudou repentinamente, o motorista foi
arrancado pela janela e lançado na escuridão, o veículo ficou sem controle,
olhei para o volante sem poder fazer nada e vi o momento que o furgão voou pelo
acostamento, no reflexo olhei para trás procurando no que pudesse me agarrar, o
lobo já não estava no veículo, apenas a porta aberta. Em segundos o veículo
caiu uma pequena ribanceira, capotando diversas vezes, tentei manter-me firme o
máximo possível, mas algo completamente impossível para as minhas forças naquela
situação, em algum momento bati a cabeça e vi tudo escurecer.
Não sei por
quanto tempo fiquei apagado, acordei com uma dor de cabeça terrível, algo denso
e quente escorria por meu rosto, sangue. Encostei na lateral do veículo tentando
me acalmar, meu ombro direito estava deslocado, braço esquerdo quebrado com uma
fratura exposta e eu ainda estava algemado. Levantei com dificuldade e sai do
veículo, ao virar e olhar percebi que tive sorte em ter um ombro deslocado e
apenas um braço quebrado, o furgão estava todo arrebentado devido à queda, em
outras circunstâncias, não teria acreditado que alguém sobreviveria aquilo.
Olhei em volta e não vi o lobo, segui o rastro de destruição até chegar a
pista. Olhei para ambos os lados e não vi uma alma viva, nenhum sinal de casas por perto ou algo parecido, cambaleei a pista até um pouco depois do lugar do
acidente, eu tinha que encontrar o motorista para recuperar a chave da algema, andei
durante alguns metros até que vi o primeiro indicio.
Havia um baque de sangue,
acredito que era o lugar onde o motorista caiu quando foi arrancado pela janela, olhei
com mais atenção e vi um rastro de sangue, ou o infeliz sobreviveu a queda e
saiu se arrastando ou foi arrastado até não seu onde, não podia pensar muito e eu precisava
da chave. O Rastro se estendeu por volta de dez metros da poça, descendo o
acostamento lateral da pista, com muita dificuldade desci, um pouco mais e encontrei o pobre infeliz. Ele estava todo estraçalhado, suas entranhas para
fora, o intestino delgado espalhado ao seu redor, estava sem um dos braços e a
perna direita só um cotoco até o joelho. Acho que ele lutou até o último
instante, afastei esses pensamentos da mente e me aproximei do cadáver,
ajoelhei ao seu lado e não pude evitar de sentir pena, o homem estava irreconhecível.
Engoli a ânsia de vomito e comecei a procurar as chaves nos bolsos da calça,
não encontrei nada. Se elas não estivessem com ele e sim com o outro policial? O
desespero bateu por todo o meu corpo, não sabia a que distancia o outro estava
e se estava no mesmo estado que esse ou pior, quase desistindo, olhei no bolso
de sua camisa azul, para minha surpresa a encontrei.
Abri a algema com muita
dificuldade, a primeira coisa que fiz fui tentar colocar meu ombro no lugar. Me
aproximei da arvore onde estava o policial morto e respirei fundo, bati com meu
ombro direito na arvore, a dor foi insuportável, mas eu precisava recolocar o
ombro, não consegui na primeira vez, respirei fundo e tentei novamente e nada,
a dor era tanta que pensei que desmaiaria novamente, tentei pela terceira vez,
dessa vez respirei fundo, contei a até três e investi com força mais uma vez
contra a arvore, escutei um “trec” e senti que o tinha encaixado novamente, cai
no chão sentindo muita dor. Após alguns segundos, voltei ao guarda, precisava
fazer uma tipoia para meu braço quebrado, não havia nada com o guarda que eu pudesse usar , as roupas estavam todas rasgadas e eu não conseguiria
tirar minha camisa para fazer uma tipoia com ela, meu braço direito estava inchado de tal
maneira que não conseguiria ergue-lo acima da cabeça e o esquerdo quebrado,
seria impossível. Olhei para as botas do homem e vi as únicas coisas que poderiam
me ajudar nesse momento, com apenas um braço, consegui tirar os dois cadarços,
os uni usando minha boca como auxilio, fiz uma ponta tipo laço, arranquei um
pedaço da manga do policial e passei pelo meu punho e osso fraturado, joguei a
ponta por cima do pescoço e com dificuldade a peguei e por fim, amarrei tomando
a precaução de não deixar apertado e prendesse a minha circulação.
Antes de
sair, olhei para o homem e não pude deixar de pensar na sua família que ficaria
desamparada e rezei por eles. Percebi que havia um cabo saindo de sua bota
direita e ao puxa-lo encontrei um revólver calibre 22, era pesado, percebi que
devia estar carregado, não entendia nada de armas, mas já havia visto várias desse
tipo em filmes, para mim era só engatilhar e atirar, simples assim. Coloquei
por trás na barra da calça e subi a colina, tinha que sair dali o mais rápido possível,
não poderia esperar outros policiais ou que os lobos voltassem, essa também era
minha única oportunidade de me vingar.
Ao chegar na
pista ouvi o som de um carro, meu primeiro impulso foi pedir ajuda, mas logo
minha razão voltou a prevalecer, quem ajudaria um cara ferido com roupa de presidiário?
Me abaixei e deixei o carro passar, com sorte quem estivesse dirigindo não
veria o sangue e passaria direto até o local do acidente, seria tempo
suficiente de ir na direção contraria. O Carro passou e não me viu, esperei
mais alguns minutos e não o vi voltar e nenhum outro passar, levantei e fui até
metade da pista, aconteceu como eu havia pensado, quem estava dirigindo havia
percebido o lugar do acidente e parou para tentar ajudar, a porta do veículo
estava aberta e eu não conseguia ver se ele estava dentro ou não, presumi que
não. Tentei correr pelo acostamento para o mais longe possível, mas no meu
atual estado era quase impossível. Após me distanciar uns quinze metros do
corpo e uns trinta ou quarenta metros do furgão, ouvi um uivo, um uivo não,
eram vários uivos. Não tinha como saber de qual lado era oriundo aqueles sons,
fiz a única coisa logica que me veio à mente, fiquei parado no meio da pista,
seja o que fosse, conseguiria ver de ambos os lados antes de me atacarem. Um
grito feminino cortou o ar, após alguns segundos ouvi uma sequência de tiros,
vinham da direção do carro, além da pessoa estar armada, também era uma mulher. O
clima ficou pesado, não ouvi mais nada nos minutos seguintes, armada ou não,
provavelmente estava morta. Antes que eu pudesse pensar em ir ajudar ou correr
para me salvar, senti um rosnado vindo por trás de mim, me virei e vi um imenso
lobo, era negro e olhos vermelhos, a criatura era imensa, bem maior do que a
que eu tinha visto antes do acidente, na verdade, esse praticamente tinha o
tamanho do próprio furgão. O lobo negro uivou, em seguida vários outros uivos
soaram como resposta, em poucos segundos uma alcateia saiu por todos os lados, eu estava cercado.
O lobo maior,
começou a andar em minha direção, como se fosse automático, os outros começaram
a segui-lo, a única coisa que podia fazer era andar para trás com todo o
cuidado para não fazer nenhum tipo de movimento brusco, esse com certeza era o
alfa do grupo, pude deduzir isso não por conta do seu tamanho que com toda a
certeza era o maior, mas pelo seu comportamento. O alfa, parou de repente e
olhou para trás do seu grupo, com um leve rosnar e um curto latido, um lobo
menor pareceu responder o chamado, esse era pequeno e menor que os outros, um
pouco mais magro também, percebi que era o ômega.
Ele era menor, mas não menos perigoso
do que os outros, talvez fosse o mais assustador depois do líder, o ômega rosnou
em minha direção e olhou para o alfa, esse deu outro latido e fez com que o ômega
avançasse em minha direção, poucos metros nos separavam e mesmo que tentasse
não conseguiria correr, minhas pernas estavam paralisadas. lembrei-me
da arma, puxei da cintura e mirei na criatura, puxei o gatilho e nada, não
havia engatilhado a bala e em uma rápida segunda tentativa, engatilhei e
atirei, o coice da arma não foi grande, mas no meu estado atual até um sopro me
derrubaria, fui ao chão. Uivos passaram a ecoar o ar, olhei o lobo e percebi
que eu havia acertado o seu olho esquerdo, a criatura chiava, se debatia e
fazia sons que não conseguiria descrever, atirei mais duas vezes mas a criatura
praticamente desviou dos tiros, quando ela me encarou, percebi ódio em seu
olhar. Eu estava perdido, a criatura voou em minha direção, suas presas
amostra, eu iria morrer ali, em um ato de piedade, medo ou talvez covardia, já
não sei dizer, engatilhei a arma e encostei na têmpora da minha cabeça. Mais
antes de puxar o gatilho, ouvi mais três tiros, o primeiro acertou em cheio o
dorso do lobo e ele conseguiu se esquivar dos outros dois, a criatura tombou de
lado e começou a rolar no chão como se tentasse apagar um fogo que possuísse o
seu corpo. Uma mão me segurou pelo ombro e me fez levantar.
- Levanta
agora. – Gritou uma mulher.
Eu estava tão surpreso com tudo
que não havia raciocinado direito, uma mulher tinha acabado de salvar a minha
vida. Olhei para trás e percebi que seu carro estava parado a poucos metros,
fiquei com tanto medo que não percebi sua aproximação, havia uma possibilidade
de sobreviver, corri em direção ao carro com a mulher em seguida. O lobo alfa não
iria nos deixar escapar, em segundos ele pulo por cima do ômega que ainda
estava caído e correu em nossa direção, ela se virou e deu mais dois tiros, não
acertou o lobo, mas esse perdeu velocidade e compasso ao se esquivar dos tiros,
tempo suficiente para entrarmos nos carro.
Me joguei
para dentro do carro, pulando direto o banco do motorista para o do passageiro,
a moça entrou logo em seguida, batendo a porta com força. Ela tentou ligar o
carro, mas o motor não pegou de imediato, o lobo alfa investiu com toda a força
na lateral, por um segundo o carro levantou e ficou suspenso em apenas
duas rodas, pensei que o carro ia
virar, mas nesse instante o motor pegou e a mulher acelerou o veículo, fazendo
com recuperasse o equilíbrio. A mulher pisou fundo no acelerador, em instantes
o carro passou de zero a sessenta, a mulher trocava as marchas com tanta facilidade
que mal dava para sentir o momento que o carro pedia para troca.
Olhei pelo retrovisor o lobo estava ao nosso encalço, não só ele, mas toda
alcateia, imaginei como iriamos fugir, eles eram rápidos de mais. O lobo estava
a poucos centímetros da traseira do veículo, mas em um momento magnifico de inteligência,
a mulher puxou o freio de mão, nessa distancia o lobo não tinha como desviar. O
baque foi imenso, o lobo voou por cima do carro e caiu a uns dez metros de distância.
Mais uma vez a mulher acelerou, antes que o lobo pudesse levantar ela bateu com
a frente do veículo na enorme cabeça do lobo alfa, ouvi com clareza o som de
ossos e carne se rompendo, a mulher mais uma vez acelerou e seguiu em frente,
olhei para trás e vi o lobo caído ao chão, os outros se aproximaram e começaram
a cheirar o seu líder. Antes de os perder de vista, consegui identificar o ômega
chegando perto do seu líder tombado e em seguida uivando, todos uivaram como
resposta. Mesmo tendo escapado, sabia que não iria terminar assim.
Virei para a
mulher e finalmente prestei atenção em seu rosto, era a mesma que vi quando sai
do tribunal, a mesma que disse que acreditava em mim e pela segunda vez me puxou pelo ombro
- Quem é
você? – Perguntei.
- Sou a
pessoa que acabou de salvar sua vida. – Disse sem ao menos olhar a minha cara.
- Obrigado por
isso. – disse amargamente. – Mas o que eu quero saber é quem é você... qual seu
nome?
- Rosangela. –
Ela respondeu.
...
Não conseguia acreditar no que Ferraz estava me contando, esse
homem que salvou minha vida era mais misterioso do que eu imaginei, será que
todos passaram por algum tipo de tragédia para chegar aqui?
- Ferraz, eu
sinto muito por isso, mas eu nunca fiquei sabendo dessa história. Como tudo isso não saiu no jornal?
Ferraz deu
uma risada irônica.
- Não teria como você saber disse garoto. Eu era apenas alguns
anos mais velho do que você quando tudo isso aconteceu.
- Isso ocorreu a quanto tempo? – Perguntei. – Nunca vi nada
parecido na internet ou fóruns.
- Faz mais ou menos quarenta anos, não existia internet no meu
tempo, celulares, fóruns ou qualquer outra forma para se propagar ou de manter
a longo prazo. – Disse. – Provável que alguns espalharam para outros e esses
por diante, mas com os anos logo foi esquecido. – Disse o velho. – Além do
mais, as autoridades abafaram o caso, quem acreditaria que eu fugi algemado do
furgão policial, deixando-o completamente destruído, com marcas de mordidas e
enormes arranhões por todo o veículo, deixando também um policial desaparecido
e outro completamente devorado na estrada, no mínimo eles teriam que admitir a
verdade ou dizer a todos que eu havia me transformado em um animal e matado os
guardas.
- Faz sentido. – Respondi. – Essa mulher, Rosangela? Ela ainda está
viva?
- Sim, esta sim. – Respondeu. – Ela me levou para a ordem, me
treinou como podia e graças a ela estou aqui hoje, mas isso é assunto para
outra conversa e não temos mais tempo a perder.
Ferraz levantou, olhou em volta e saiu do quarto.
- Vamos garoto, a estrada e longa e temos pouco tempo. – Disse em
um tom melancólico.
Quinze minutos depois, estávamos fora da casa. Ferraz se aproximou
como quem fosse se despedir, abriu uma garrafa de Whisky e tomou dois ou três goles.
Tirou um lenço fino do bolso da blusa e limpou a boca, após molhou o lenço com
a bebida e fechou a garrafa com alguma coisa que não consegui identificar,
acendeu o pano e jogou. Em pouco tempo o fogo se alastrou na frente da casa,
era um festival de chamas. Ferraz olhou mais algum tempo e entrou no carro.
- Não podemos
deixar nada para trás, nada. – Disse.