Batalha na colina. - Capítulo 10.


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                                                                       Capítulo 10.


De acordo com o velho, iriamos viajar durante alguns dias e todo cuidado seria pouco, na estrada ficaríamos expostos a qualquer ataque. Antes de partimos, Ferraz preparou uma mala com mantimentos e vários tipos de armas, algumas pistolas, facas de combate, duas escopetas, um fúsil que acredito ser exclusivo das forças armadas, um arco composto bem robusto com uma aljava cheia de flechas e outras coisas que não consegui identificar, mas o que chamou mais a minha atenção foi uma catana longa de cabo e bainha preta com um desenho de uma flor dourada entalhada, sua lamina era de uma cor azulada e dependendo da maneira que a luz refletia, era possível ver um algo tremeluzir na espada, lembrei do movimento das ondas do mar.
Peguei aquela arma com um olhar insano e me senti um verdadeiro samurai, pronto para a batalha, deixei de ver o mundo ao meu redor, só existia a espada e eu. Tamanho era minha loucura naquele momento, que não ouvi o velho me chamar, só o percebi quando a espada foi arrancada de minhas mãos, deixando-me com a sensação de que um filho acabará de ser arrancado dos meus braços.

- O que você está fazendo? – Gritei para o velho.
- Você estava parecendo um lunático brandindo essa espada no ar, o que você acha que isso é? Um pedaço de pau? – Rebateu o velho, em um tom seco e áspero. – Pois não é meu garoto, isso é uma arma letal, forjada de um metal muito raro e tão afiada, que apenas um arranhão no seu braço pode corta-lo fora.

O velho a embainhou, e colocou junto com as outras armas dentro da bolsa e entrou no veículo, eu o e o segui.

- Desculpe. – Foi a única palavra que consegui emitir, estava completamente envergonhando, nunca havia visto aquele velho irritado. Apesar de ter a primeira vez para tudo, confesso que fiquei assustado com sua reação inesperada.
- Não garoto – Falava de maneira suava. – Eu que devo pedir desculpas, não era necessário falar dessa maneira... Mas você tem que entender que nem tudo é um brinquedo que você possa sair balançando pelo ar, algumas coisas são extremamente mortais e essa... – Respirou profundamente. – Essa eu tenho uma ligação profunda. Então não a toque.
- por quê? – Perguntei igual uma criança contrariada. – Porquê não posso usa-la?
- Bem... Essa espada é especial... Ela... Ela usa o poder espiritual do usuário, em troca de sua força. – Disse.
- Poder espiritual? – Perguntei. – Como isso é funciona?
                - Quando os anjos vieram do reino dos céus, trouxeram consigo algumas pedras especiais. Essas pedras tinham o poder de extrair ao máximo o poder espiritual dos anjos, e graças a ela, poderiam usar todas as suas forças em batalha se fosse necessário. Quando os anjos criaram suas casas e passaram a treinar os homens, perceberam que esses tinham uma grande desvantagem nas batalhas, armas humanas eram fracas e muito inferiores para combater seus inimigos e na esperança de criar um exército que pudesse fosse páreo tanto em número como em força para enfrentar as trevas, eles juntaram todas as pedras que carregavam consigo e deram para os mais habilidosos ferreiros daquela época.
Esses descobriram que as pedras na verdade, eram um tipo de metal muito raro e que transmitia uma sensação de energia pura, e chegaram à conclusão que não importaria onde procurassem, nunca encontrariam nada semelhante na terra. Após algum tempo estudando aquele metal, descobriram que se ele fosse exposto a uma certa temperatura, poderiam derrete-lo e molda-los, assim passaram a criar novas armas. Essas se mostraram muito eficientes no campo de batalha, finalmente passamos a lutar quase em igualdade com as forças das trevas, mas tinha um alto custo para os humanos ter tanto poder.
Por sermos inferiores aos anjos, tanto em força e sabedoria, a maior parte dos homens ficavam fascinados por seu poder e acabavam sucumbindo à loucura e o desejo crescente de ser mais forte. Era uma honra receber uma dessas armas, mas um fardo também, o caçador que tivesse sua posse sabia que cedo ou tarde estaria morto ou louco, morto pelas mãos de seus inimigos ou traído por seus desejos carnais.
Com o decorrer dos anos, vários humanos se destacaram em controlar suas armas, mas não mais que uma caçadora, uma das melhores da ordem, devota, inteligente, ágil e com um senso de justiça acima dos demais. Hanane descobriu que poderia controlar sua arma se tivesse uma espiritualidade elevada, quanto maior fosse sua fé, mais fácil seria controlar seus desejos. Ela se tornou a primeira mulher a liderar um exército de caçadores, não que as mulheres fossem inferiores, não existe essa discriminação entre nós, afinal, todos são iguais perante a Deus, não importa, raça, cor, religião ou opção sexual, todos são iguais. Mas ver uma mulher na frente do campo de batalha e milhares de homens e mulheres seguindo seus comandos, deve ter sido uma imagem incrível, e dizem que também foi a primeira humana a gerar um filho de um imortal, um anjo.
               
- Ela devia ser impressionante. – Pensei alto. –Depois dela, outras tiveram filho com anjos, certo?
                - Sim. – Respondeu. Os descendentes se uniram, criaram famílias e se espalharam no mundo.
                - Bom, se eu sou um descendente de um imortal. – Disse. – Então, eu posso usar essas armas sem nenhum problema, certo?
                - Errado. – Mais uma vez falou naquele tom seco e cortante. – Você também puxou os piores defeitos do ser humano. – Disse. – Inclusive a falta de fé.
                - Isso não é verdade, eu tenho muita fé. – Respondi.
                - Você acredita em Deus? – Perguntou. – Melhor, você o conhece?
                - Sim... Talvez, não... – Respondi. – Acho que ninguém o conhece.
                - Ai está a diferença. – Disse o velho. – Hanane afirmava que o conhecia, outros caçadores afirmam que o conhecem, e eu conheço também.
                - A várias maneiras de conhecer Deus. – Respondeu ao ver minha cara perplexa com aquela afirmação. – Alguns dizem que o conheceram em sonho, outros ouvem vozes, Hanane o conhecia através de sua força de vontade e eu o conheço por não me sentir sozinho.
                - Então você não o conhece – Falei. – Ao menos, não pessoalmente.
                - Eu o conheço. – Disse de forma segura.
               

Após a breve conversa, Ferraz deu partida no carro e saímos antes de ver a casa ruir devido ao fogo. Percebi que o velho segurava o volante com tanta força, que os nós de seus dedos estavam totalmente brancos por causa da pressão. Para ele era difícil deixar aquele lugar e eu com certeza não queria saber quais eram seus pensamentos naquele momento, sabia exatamente como era abandonar o seu lar. Pegamos a estrada ainda de madrugada, a viagem seria longa e quando mais cedo partíssemos, seria melhor. Além do mais, não queríamos estar próximos do lugar, quando as autoridades fossem apagar o fogo da cabana ou possível incêndio florestal, me senti meio culpado.

...

                Nesse momento estamos viajando por uma estrada secundaria, de acordo com o velho, usaríamos velhas estradas secundarias e trilhas pouco conhecidas para passarmos despercebido por policiais ou qualquer outra coisa que pudesse nos atrapalhar até o nosso destino.
Nesse momento estamos em uma velha estrada de barro assentado e muito esburacada, Ferraz tem um antigo opala Comodoro de cor preta e filtros fumê no vidro, tenho que admitir que é um carro lindo e com um ótimo roncado de motor, infelizmente não foi feito para andar nesse tipo de estrada. Em meio aos solavancos e pulos do veículo, vejo a sacola com a espada pular no banco traseiro, algo naquela arma chamou muito a minha atenção, quanto estive com ela em mãos, me senti pela primeira vez protegido, me senti como se eu pudesse enfrentar tudo e todos sem a menor dificuldade, infelizmente o velho estava certo, eu não estava preparado para usa-la e eu sabia disso em meu interior, mas também sentia, uma enorme necessidade em tê-la em minhas mãos novamente, era algo como a fissura que um viciado em drogas sente. Não sei porque, mas fiquei ligado aquela espada.

                - Ferraz, como você conseguiu essa espada? – Perguntei.
                - Isso faz muito tempo, essa espada foi passada para mim por alguém muito especial. – Disse. – O dono dela era uma pessoa maravilhosa, foi uma pessoa que acreditava cegamente em sua fé e se tornou um grande caçador.
                - ele era? – Perguntei.
                -  Sim, morreu há muitos anos... e deixou a espada para mim. – O velho estava com um olhar perdido, como se lembra-se do passado. -  Eu não te contei isso, mas não existem mais pedras para forjar novas armas, é você provando seu valor e ganhando de alguém.
                Continuou.
                - A partir desse momento, você escolhe ficar com a arma original ou entrega para algum de ferreiro da ordem para que a arma seja modificada para um tipo que te agrade.
                - Mas por que alguém faria isso? – Continuei – Digo, se foi um presente, o certo não seria manter a arma em estado original e manter a memória do antigo dono?
                - Rapaz, o importante não é a arma em si, mas o proposito que o portador dá a ela. – Disse. – Não se herda a arma, mas sim o material e o seu significado. Além do mais, se alguém reconheceu o seu valor e te deu o seu bem, mais precioso, é porque ele acredita em você.
                Continuou.
-  E você não deve usar uma arma que não tenha aptidão ou maestria para tal. Esse erro, já levou diversos caçadores a uma morte prematura, por isso, é feito a modificação.
                - Você a refez? – Apontei para a bolsa por cima do ombro.
                - Não, é a mesma arma do antigo dono. – Disse. – Preferi manter sua memória, além do mais, não conseguiria fazer uma nova arma que fosse a altura do antigo portador.
                - Era uma pessoa muito especial para você? – Perguntei.
                - Foi o maior amigo que já tive, alguém de valor inestimável, um irmão.
               
O velho ficou quieto, mas após alguns minutos continuou.

- Quando cheguei na ordem, eu não tinha nada, não tinha mais ninguém na minha vida. – O velho estava mais uma vez com o olhar distante. – Só conhecia uma mulher chamada Rosangela, que salvou minha vida e passou a me treinar, por esse motivo, eu era sozinho. Dediquei todo o meu tempo aos treinos e estudos e em consequência esqueci de todo o resto, mas quanto mais me destacava entre os outros, menos sociável eu ficava.
                - Eu não sou como você, sou apenas humano. E como todo humano, sou muito competitivo. E percebi isso com o tempo, porque mesmo me dedicando muito, não era o melhor. – Narrava em um tom sereno, mas com uma vibração de emoção em sua voz. –Tinha um rapaz que se destacava em tudo e não importa o que eu fizesse, ele sempre estava um passo à frente, sempre... Sem perceber estava competindo em tudo contra aquele cara. No treino de artes marciais, vencia todos os outros cadetes, menos aquele cara, corrida livre, terminava sempre em segundo, sempre perdia para ele e nos estudos...
                - Deixa eu adivinhar, você sempre perdia para ele! – Soltei um risinho.
                - Não precisar ser debochado – O velho sorriu. – Com o tempo percebi que não havia a mínima chance de ser melhor que ele.
                - Qual é o nome dele? – Questionei.
                - Samuel... Samuel Fonttanele. – Disse. – Não havia como ser diferente, ele era descendente de uma nobre família da ordem com a incrível tradição de serem os melhores entre os melhores e com certeza meu amigo fazia jus a essa fama.
- Mas sabe garoto, Samuel era um cara excepcional. Era aquele tipo de pessoa que nasce um gênio, ele era melhor que qualquer outro e suas habilidades eram a prova disso. – Falava o velho – Um dia percebi que não havia a mínima chance de eu ser o melhor, então aquele sentimento de rivalidade, inveja ou algo parecido, passou a ser de admiração e respeito.
                - Com o tempo passamos a ser amigos, não só amigos, passamos a ser irmãos. – Disse. – Concluímos o restante do treinamento, e pouco tempo depois fomos escolhidos para receber nossas armas. Em todo nosso treinamento nossos mentores nos ensinaram diversos tipos de combate a utilização de várias e táticas, mas sempre enfatizaram que o melhor caçador não é aquele que sabe usar diversas técnicas, mas sim aquele que escolhe uma e a aperfeiçoa até o limite. E quanto mais técnicas e armas soubéssemos, mais fácil seria descobrir qual seria a melhor para cada um de nós.
- Tanto Samuel, quanto eu, recebemos a arma da Rosangela, nossa mestra, e com ela aprendemos que o importante não seria o tipo de arma que escolheríamos, mas sim o proposito que nosso coração daria a ela. Então cada um de nós, procurou um sentindo em seu coração.
                - O coração do meu amigo tinha um forte desejo de subjugar grandes hordas de inimigos com um único movimento e guiar nossos companheiros a vitória. Então, ele imaginou uma lamina... Uma lamina tão poderosa que poderia dividir as aguas com o seu corte afiado e ao mesmo tempo mover moinhos com a leveza dos seus movimentos, assim surgiu a espada que um dia se chamaria de divisora dos mares. – Disse. – E o meu coração ainda tinha um grande desejo de vingança, mas devido a minha nova vida e meus novos amigos, desejei uma arma que pudesse protege-los. – Ferraz, parou nesse momento e respirou profundamente. – Uma arma que alcançaria o seu alvo não importando a distância, que rasgaria o céu se fosse necessário para salvar aqueles que eram importantes, assim surgiu o meu arco, que chamei de Destruidora alada. – Apontou para a sacola no banco traseiro.
- Fizemos diversas missões como caçadores, não lembro quantas atravessamos o véu, mas foram muitas vezes. Mas não importava quantos demônios matávamos, sempre apareciam dez para ocupar o lugar do que havia caído, logo, a quantidade deles era muito superior a nossa quantidade de caçadores. – Ferraz ficou em silêncio por um momento. – Certa vez, a ordem recebeu vários alertas pelo mundo. Em vários lugares, fendas estavam sendo abertas e cidades inteiras estavam sendo atacadas por forças demoníacas. Surtos psicóticos, possessões, estupros, assassinatos, desaparecimentos. Tudo obra de demônios.
- Você está dizendo que foi um ataque em escala global? – Perguntei. – E como não há registro disso?
- Você sabe o que é o véu da realidade?
- Não... – Não titubeei ao falar. – Na verdade, eu tenho uma breve ideia do que possa ser.
- Existem duas realidades, a realidade física e a espiritual. – O velho passou a usar um tom sereno na voz. – Os humanos vivem no mundo físico e os demônios no mundo espiritual. Um é ligado ao outro e ao mesmo tempo não é. O que existe aqui, existe igualmente lá, mas de maneira diferente, deformada, para ser mais exato.  – Não pude deixar de lembrar da cidade fantasmagórica, a verdade é que senti que conhecia o lugar, mas ao mesmo tempo não conhecia, pensei. – Só possível atravessa-las com seu corpo físico com uso de portais, essa regra vale para ambos os mundos. Uma vez que um demônio consegue ultrapassar essa barreira e entra no mundo físico, aos olhos dos humanos, serão apenas só mais uma pessoa.
- Atualmente existem, milhares de demônios convivendo no mundo físico, escondidos entre os humanos, agindo como pessoas normais, trabalhando, estudando, talvez um vizinho amigável, um rapaz ou uma garota bonita da escola, quem sabe? – Narrava o velho. – Muitos humanos vivem diretamente com eles, sem ao menos se dar conta da sua verdadeira identidade durante toda sua vida, e esses infiltrados, por sua vez, enganam e corrompem a mente e o coração humano e após sua morte, sua alma se une as trevas e esse renasce como um novo soldado em suas tropas.
- Um ser humano comum não tem capacidade de defesa e muito menos, a habilidade de ver através do disfarce, somente alguém treinado como eu ou alguém especial como você, tem essa habilidade. – Disse. – Por isso a ordem existe, por isso nós existimos, para proteger aqueles que não podem fazer isso por si.
- Ferraz, você é um humano comum, então como conseguiu ver através dou véu ou reconhecer um demônio? – Perguntei.
- Fiz muitas coisas boas e ruins quando jovem. – Disse. – Uma delas, foi abrir o terceiro olho. E digo que foram as duas coisas. Ruim, por quê graças a isso passei a enxergar o mundo oculto e eles passaram a me enxergar. – O velho ficou calado, não precisava perguntar o motivo, já sabia a resposta: Sua família. – Mas também, passei a ver a verdade.
- Terceiro olho?
- É o olho espiritual, todo humano têm a capacidade de ativá-lo, esse fica localizado no centro da testa e serve especificamente para ver aquilo que é oculto. A maior parte de nós, nascem com ele adormecido e necessitam de muito tempo de preparo e um alto nível espiritual, mas em alguns casos, alguns nascem com ele aberto e sem o devido conhecimento, o portador, acaba indo a loucura. Imagine você ver demônios, fantasmas e trevas ao seu redor sem poder desliga-los? Contar aos outros e ninguém acreditar em você? É um sofrimento imenso.
- Em toda minha vida, nunca fui dessa maneira, era uma pessoa normal, até que aquele dia. – Lembrar daquela praça, aquele demônio, ainda me davam calafrios.
- Suas habilidades começaram a ficar latentes naquela época, provável que você já vinha tendo sinais disso. – Respondeu em tom casual.
- Se estive, não reparei. – Disse. – Ferraz, e sobre o ataque?
- Então... – O velho deu uma pausa e pigarreou para limpar a garganta. – A ordem vinha recebendo vários relatos de portais e atividades por todo o mundo, estevámos em alerta total. E nossos relatórios indicavam que em um certo ponto da américa do sul, uma grande quantidade de demônios estava prestes a romper o véu.
- Como assim romper o véu? – Perguntei em tom entusiasmado, cada vez ficava mais interessante aquela ladainha.
- Sim, romper o véu. Significa, que eles não usariam portais para atravessar, até por causa do seu número limitado de pessoas que podem passar por vez, ou seja, eles quebrariam a barreira que separam as duas realidades, se isso acontecesse, não só as duas realidades iriam entrar em conflito e se tornarem uma, como teríamos um desastre colossal.
- Imagine um vidro com um imenso buraco feito por uma grande pedra, é exatamente isso que seria inicialmente. – Disse. – Com o véu quebrado em uma parte do globo, uma massa imensa de demônios poderia passar de uma única vez e isso seria só o início. Nossos caçadores estariam ocupados tentando manter a ordem nesse ponto e enfrentando uma grande quantidade de inimigos e não tenho dúvidas que eles teriam aproveitado essa oportunidade para fazer outras fendas no resto do mundo, até derrubar o véu por completo.
- Seria o fim da humanidade. – Conclui.
- Exatamente. – Continuou. – Mas antes da situação chegar de fato nessa situação, a ordem emitiu um chamado de urgência para todas as equipes e caçadores solitários se apresentassem imediatamente. Uma vez que todos estavam reunidos, a ordem nos informou da situação crítica. A única vez da história que ouvimos falar de algo de tal magnitude, foi quando Hanane era a líder suprema da Ordem, a idade das trevas. Seria o momento mais importante da nova geração de caçadores, um momento para demonstramos bravura e honra, quem sabe conseguir uma promoção na ordem. Nós éramos ingênuos. – Nesse ponto o semblante do velho estava sombrio. – Fomos em grande quantidade para aquele ponto da américa do sul. Nossa missão seria chegar no lugar, averiguar a situação e interferir que conseguissem derrubar o véu, percebemos que não havia possibilidade de fazer isso no mundo espiritual, uma vez que todo o processo deu início no mundo espiritual, teríamos que ir até os domínios de nossos inimigos.
- Quando chegamos no local, percebemos que as duas realidades estavam em ponto crítico, se demorássemos muito, uma fenda de tamanho inimaginável seria aberta e não seria possível fecha-la, nunca mais.  – O velho nem olhava para mim ao narrar e eu estava concentrado em captar o máximo de informações que pudesse. – Samuel foi escolhido para ser o líder e ele nos passou o plano, era o mais simples possível, abriríamos portais no mundo físico, atravessaríamos, lutaríamos até que selássemos a fenda por dentro e abríamos novos portais para voltar, fechando-os em seguida.
 - Nós estávamos com mais ou menos cinco mil caçadores, vindos de várias partes do mundo, 90% de nós estávamos ali, até onde sabíamos, poderia ser nossa última batalha, a última defesa da humanidade. Abrimos diversos portais, tínhamos que entrar com o maior número possível de caçadores, não tínhamos como saber o que nos esperava do outro lado.
- Tivemos que nos dividir em 5 grupos para entrar, abrimos o número máximo de portais que conseguiríamos manter, porque não era possível entrarmos todos ao mesmo tempo. – Ferraz ficou em silêncio mais uma vez e olhou a estrada de uma maneira pesada e rancorosa. – Ficamos no último grupo para entrar, por Samuel, ele teria entrado no primeiro grupo, mas sabíamos que haveria baixas e não poderíamos correr o risco de perder nosso líder.
- Após o último caçador do terceiro grupo, nos preparamos e avançamos, o tempo de travessia pareceu uma eternidade, quando finalmente chegamos do outro lado, me deparei com o maior massacre que já havia visto na minha vida. Meus Irmãos caçadores, estavam sendo aniquilados. Em cada grupo havia quase mil caçadores, metade dos que tinham entrado já estavam mortos, e o restante estavam cercados por hordas de demônios de todos os tipos.
- Olhei horrorizado para Samuel, esse não esboçava nenhuma expressão, quando ameacei falar alguma coisa, meu irmão assumiu o controle do grupo e se juntou aos outros que ainda estavam de pé. Não tive tempo para pensar, fui dar cobertura aos meus amigos. – Era palpável a emoção que transbordava na voz do velho. –Estávamos no pé de uma grande colina, essa estava lotada de demônios e outras criaturas malignas. Cães do inferno, demônios alados, serpentes enormes, gigantes, haviam grupo de lobisomens, bruxas, necromantes e qualquer outra coisa que você pudesse imaginar, alguns nem imaginava que se enquadrassem nessa categoria.
- Samuel e um grupo de habilidosos caçadores abriram caminho entre aquela loucura, dava para ouvir nitidamente tilintares de metais soando por todos os lados, gritos de guerra, gritos de dor, rugidos. Um mar de sons que faziam uma estranha sinfonia entoar por tanto campo de batalha, me juntei ao grupo e atirei o máximo de flechas que eu conseguiria, cada criatura que tentava avançar a nossa linha de frente, era uma flechada e uma queda, claro, eu não era o único atirador, diversos outros utilizavam arcos compostos, rifles, pistolas e outras armas a distância. Então você pode imaginar como foi fácil cobrir nossos parceiros naquele ataque. Samuel liderava o grupo com extrema facilidade, todos o respeitavam e por isso seguiam seus comandos sem ao menos pestanejar.
- Em pouco tempo de batalha tomamos a colina, formamos uma rápida equipe para cuidar dos feridos, que na verdade, eram poucos. O resto de nossos companheiros estavam espalhados pelo campo de batalha nos mais diversos pedaços. Alguns estavam tão desfigurados, que era impossível reconhecer quem foram antes.
- Nós não tivemos muito tempo para cuidar dos feridos ou fazer alguma oração pelos mortos. Poucos minutos depois, ouvimos novos barulhos. Vozes, gritos, rugidos, uma mistura de sons vindo do outro lado da colina. Samuel sabia que não teríamos tempo para descanso, em pouco segundos nos reorganizou de maneira espetacular, a formação feita em formato de flecha ocupou toda a colina, os feridos e o pequeno grupo que estava cuidando deles, ficaram para trás, não só com o objetivo de cuidar dos nossos que estavam machucados, mas também para abrir os portais de volta.
- Subimos a colina em um compasso único, senti como fossemos um único indivíduo subindo a colina. Quando alcançamos o topo e enfim contemplamos o outro lado, percebemos que era o fim. Não havia como vencermos aquela guerra, um imenso exército negro estava do outro lado. Eram tantas criaturas que não conseguíamos ver o fim, víamos inimigos até o limite que nossa vista alcançava. O que poderíamos fazer contra aquele exercido imenso, tínhamos muitas baixas. Eles eram dez mil?  Cem mil? um milhão? Não sei dizer, mas eram muitos.
- As criaturas urravam de ódio, o grupo que nos recebeu era apenas a entrada, o prato principal era aquele exército. Olhei para trás e olhei nossos inimigos caídos, até aquele momento, não tinha enfrentado nenhum anjo caído, só demônios de classe baixa, e outras criaturas facilmente substituíveis. E ao olhar para nossos novos inimigos, os avistei, na frente da tropa estavam os anjos negros, liderando junto com seus filhos, os verdadeiros comandantes.

- De imediato Samuel correu para o final do nosso grupo e gritou do alto da colina para os que ficaram tratassem de reparar a fenda e em seguida abrissem os portais para voltarmos. Mas os comandantes do exército negro já esperavam por isso.
- Gritos de guerra voltaram a ecoar por todas as direções, cada vez mais alto, aquela enorme multidão enegrecida estava sedenta por sangue, o nosso sangue. – Não fazia uma pergunta ao velho, dava para perceber que estava se forçando para contar os fatos. – Ao comando dos seus senhores, aquele mar de demônios avançou ao nosso encontro, sabíamos que não teríamos tempo de recuar.
- Sabe garoto. – Disse o velho, ao finalmente se lembrar da minha presença. - Uma batalha real não se parece nem um pouco com aquelas vemos em filmes, não há tempo para frases motivacionais, não há tempo de se despedir dos amigos, não a tempo para nada, tudo acontece muito rápido, um simples piscar de olhos é o suficiente para um amigo tombar ao seu lado, e nós sabíamos muito bem disso.
- Samuel era um cara incrível, todos admiravam sua postura, só foi necessário ver nosso líder brandir sua espada para que nos juntássemos a ele, nos unimos novamente em formato de flecha. Todos os que lutavam corpo a corpo estavam na linha de frente, nos de longo alcance, ficamos atrás. Nessa formação nosso líder nos guiou de encontro ao exército inimigo, nós os atingimos como uma flecha quer perfura certeiramente o centro do seu alvo. Nossa missão não era vencer, mas segura-los, até nossos colegas feridos tivessem voltado em segurança e que a fenda estivesse selada.
- Nesse momento rapaz. – Ferraz olhou fundo dos meus olhos, percebi um brilho no olhar, não um simples brilho. Era a admiração de uma lenda, estampada na sua face. – É que meu amigo virou uma lenda. Em meio a batalha é difícil prestar atenção em alguém especifico, qualquer distração é vital, mas não tinha como não ver o que ele fazia com sua espada. A divisora dos mares reluzia entre toda aquela maré negra, um azul tão reluzente e afiado, cortava ao meio aquele imenso mar negro na nossa frente, era como ver um tsunami varrendo os demônios do nosso caminho, por alguns momentos, nós realmente estávamos vencendo, a emoção era tão grande que não pensei duas vezes, corri entre a multidão, usando meu arco para abrir caminho, minhas flechas perfuravam vários inimigos de uma única vez, não era incrível como Samuel, mas com certeza minha devoradora alada, fazia jus ao seu nome, em pouco tempo abri caminho com mais alguns caçadores e nos juntamos ao nosso líder, nós iriamos vencer, eu já tinha certeza.
- Samuel estava na minha frente, atacando fileiras e mais fileiras de inimigos, sua espada azulada pintava o cenário como se fosse um quadro a óleo e ele algum tipo de Picasso e eu utilizando o meu arco com o máximo de velocidade possível, minhas flechas literalmente cortavam o céu, acertando todos os seus alvos de forma precisa e impressionante. Samuel não deixava ninguém chegar até minha posição e eu cobria seus pontos cegos e dos outros companheiros de forma eficiente, mas a situação mudou repentinamente – O velho parou por alguns segundos. – Um grande Nefilin negro, se juntou a batalha, ele era enorme e rápido demais, vários caçadores investiram contra ele, mas em vão. Vendo que meus companheiros, minha família estava sendo massacrada por aquele inimigo, esqueci da minha posição e corri para cima dele, cada passo que eu dava, era uma flechava que voava, sem muitos esforços, ele esquivou de algumas e defendeu outras o uso de uma enorme espada de metal negro.
- O anjo negro, não se importou com meus ataques, ele queria nosso líder. Correu na direção de Samuel, que não se intimidou e foi para cima dele também. O Caído, tinha uma espada enorme, feita de metal negro como piche, com fios serrilhados e quase do tamanho do próprio portador, aquilo devia pesar uma tonelada. O que mesmo para você, seria impossível de usar, para ele era fácil.
- O anjo, balançava aquela espada acima da cabeça como se fosse um tacape e urrava de maneira feroz para nos intimidar, faltando pouco mais de um metro de distância, ele a usou com estrema velocidade, quase não consegui ver o seu movimento. Como esperado, Samuel esquivou para a direita com um pequeno pulo giratório que mais parecia o movimento de um pião, mas suficiente ligeiro para escapar do golpe mortal. Samuel arrastou sua espada azul no chão, levantando faíscas coloridas ao seu redor, entre tons de um amarelo avermelhado e a cor azul da espada. Samuel aproveitou a distração e desferiu um ataque frontal contra o inimigo, mas por instinto ou talvez destreza, o demônio defendeu com sua enorme espada, fazendo com que o ataque do meu amigo cortasse apenas o ar e deixando a guarda do meu amigo desprotegida por alguns segundos, sem perder a oportunidade, anjo já havia passado para as costas do Samuel. – O velho narrava de maneira tão intensa que sentia como se eu estivesse presente. – Percebi que meu amigo não iria escapar, consegui atirar uma flecha que dessa vez acertou o ombro direito da criatura, que girou na minha direção finalmente tomando conhecimento da minha presença.
- Nesse pequeno momento Samuel se recuperou e desferiu um novo ataque, cortando a armadura que protegia as costas da criatura, um imenso rasgo no metal negro era visível, assim como um sangue negro que escorria pela fenda. A criatura lançou um ataque giratório e acertou o dorso do Samuel com a lateral da espada, aquilo não seria fatal, mas foi um tremendo golpe que o lançou a alguns metros de distância, a criatura viu uma brecha de acabar com a luta e correu para mata-lo, lancei três flechas tentando atrasa-lo, uma acertou um demônio que pulou na frente de sua trajetória, e antes que pudesse ver a trajetórias das outras duas, fui derrubado por outro demônio.
- Um demônio com rosto cheio de chifres e bastante ossudo tentou me atacar ali, não havia percebido sua aproximação até aquele instante, mas por sorte, estava sozinho. Procurei os outros caçadores olhando de relance, mas não avistei nenhum, provavelmente, estavam com o restante do nosso grupo, lutando em algum outro ponto ou já haviam caído.
- O demônio ossudo veio em minha direção, pronto para acabar com sua presa. Girei o corpo no chão, peguei meu arco e lancei uma flecha que foi desviada com facilidade com seu escudo, em segundos a criatura já estava em cima de mim e eu não tinha espaço ou tempo para armar outra flecha. A criatura se lançou com a espada totalmente arqueada em cima da sua cabeça, atacou traçando um corte reto na minha direção, me joguei para o lado na tentativa de escapar do alcance, nesse meio tempo, tirei da minha bota, um pequeno punhal e ele teria que servi. Sem ao menos ficar em pé, me lancei em cima da criatura, agarrando sua linha da cintura e rolei no chão com o demônio, senti uma dor profunda rasgando o meu ombro direito, de alguma maneira, fui cortado por aquele metal negro, mas eu não iria cair ali, enfiei o punhal na lateral das costelas direitas e girei a faca dentro da criatura, arranquei o punhal e enfiei novamente no mesmo lugar, o demônio urrou de dor e agonia e por um segundo me largou, pude ver o vão da sua armadura com seu pescoço e enfiei novamente o punhal nessa falha da armadura, puxei o punhal com força, cortando seu pescoço e o início do seu peitoral, não satisfeito, arranquei novamente e dessa fez enfiei direto em seu olho esquerdo, o demônio tombou ao meu lado.
- Olhei para meu ombro e o estrago era grande, a ferida estava enegrecida, havia uma infecção por conta daquele metal amaldiçoado, haviam veias estouradas por toda a extensão. Olhei ao redor e encontrei o meu arco caído, tentei levantar, mas eu estava desorientado e com a vista totalmente embaçada, tentei mantar a calma, tinha que me levantar e encontrar o Samuel, engatinhei em meio ao campo de batalha, pelo visto, os demônios não se importavam com alguém que estivesse caído de  forma quase moribunda, vários passaram por mim e nenhum me atacou, talvez não achassem necessário, afinal, pelo estado da minha ferida e a maneira que sentia meu corpo queimar, era provável que morreria a qualquer instante.
- Eu estava completamente perdido, não conseguia ver nada, não conseguia ficar em pé e mesmo que eu quisesse, seria impossível me arrastar pela colina e chegar no portal, era o meu fim. Fiquei ajoelhado, vendo apenas os vultos passarem ao meu redor, gritos ecoavam, sons de carne sendo cortadas, choros e gemidos. Em certo momento, senti como se o mundo tivesse desacelerado, meu corpo ficou pesado em quanto minha vista escurecia, não aguentei mais meu próprio peso e tombei para frente, de repente alguém me segurou e me colocou de pé.
- Era Samuel. – Ele havia me encontrado. – Ele colocou meu braço esquerdo em seu ombro, percebi que ainda estava segurando o arco com o meu braço moribundo, não sei como, talvez meu subconsciente estava forçando-me a segura-lo, por que não sentia mais a minha mão direita ou qualquer parte desse braço. Samuel não disse uma palavra, mas aos troncos e barrancos nos encontramos com o resto dos caçadores que ainda estavam lutando, esses foram abrindo espaço para que voltássemos para os portais. Não sabia se o processo de selamento estava finalizado, mas deduzi que sim, afinal, estávamos recuando. Passamos pela multidão e descemos a encosta da colina, imagino quantos caíram nesse pequeno trajeto. Chegamos aos portais el caímos em frente aos nossos companheiros que estavam ali.

- Leva ele. – Disse Samuel para um caçador.
- E você? – Perguntou o jovem caçador.
- Alguém tem que ficar para terminar o selamento, eu fico e vocês vão.

- O caçador que iria atravessar comigo, segurou-me pela cintura, forçando-me a ficar de pé, mas com o pouco de força que ainda tinha, o empurrei, mesmo quase inconsciente, sabia o que ia acontecer, Samuel iria se sacrificar por todos nós.
- Samuel, o que você está fazendo porra? - Gritei. – Samuel.
- Não posso passar meu amigo. – Ouvi a inconfundível voz do meu amigo. – Alguém tem que ficar, fechar os portais e restaurar o véu por esse lado, além do mais, não posso deixar que mais nenhum dos meus homens morrem aqui.
- Então eu vou ficar também. – Falei já preparando meu arco, mas sem forças, fui ao chão. – o caçador mais uma vez me sustentou.
- Eu sei que você ficaria ao meu lado, mas você não tem condições de lutar. – Meu coração gelou quando ouvi meu irmão falar essa frase. – Você tem que ir, eu sei que você tem uma missão importante para cumprir e ela não termina aqui e você ainda tem um certo demônio para encontrar e ele não está aqui. – Disse. – A minha missão termina aqui, tenho que proteger todos os que estão lá fora, todos aqueles que não podem lutar e nesse momento você é um desses.
- Pega meu amigo, agora ela é sua.
- Sua espada? – Questionei.
- Sim, não vou precisar mais dela. Ache um substituto.
- Samuel colocou a mão em meu ombro e passou-me a espada, antes que eu pudesse dizer alguma coisa, fui empurrado pelo portal. Quando percebi cai do outro lado e fui amparado por outros caçadores, levantei e tentei voltar pelo mesmo portal, mas ao tentar fui lançado longe e bati a cabeça em alguma coisa, perdi a consciência imediatamente.
- Acordei algum tempo depois na ala médica, fiquei sabendo que meu amigo, havia ficado do outro lado para fechar a fenda, dos cinco mil caçadores, apenas duzentos, contando com os feridos e comigo, conseguiram sobreviver. Foi a maior perda da ordem e pela segunda vez, havia perdido mais um membro da minha família, perdi um irmão.
- Depois disso garoto, a ordem não conseguiu reunir tantos membros. Temos um número de pouco menos de dois mil caçadores que estão em treinamento, a maioria é da sua idade e os veteranos estão espalhados pelo mundo, procurando outros como você. Por isso você é importante. – Apontou para mim ao dizer isso.

- Sim, Ferraz. – Respondi sentindo o nó na minha garganta, era um peso muito grande. Se na época que o velho era um caçador ativo, e a ordem tinha muitos membros experientes, e mesmo com aquele número de caçadores, não foi suficiente para conter o exército negro, imagino agora. 

O despertar de um velho. - Capítulo 09.


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                           O despertar de um velho. - Capítulo 9.




Fiquei surpreso ao ouvir como tudo isso começou, não era apenas uma questão de eu ser um humano excepcional, mas era uma questão mais delicada do que eu havia pensado, entendi porque o velho Ferraz, não havia contado tudo desde o início, afinal, quem em sã consciência acreditaria em ser algum tipo de descendente de anjo?  Mas com sinceridade, o que mais me surpreendeu foi em saber que estamos perdendo. Sempre imaginei que o bem venceria o mal, que a luz iria se sobressair sob à escuridão, mas o que fazemos quando a realidade é tão diferente do imaginado? A verdade é que nós tentamos ser otimistas, se pararmos para pensar um pouco, nesse exato momento em que estou pensando isso, tem várias pessoas fazendo maldades pelo mundo, pensamentos de inveja, vingança, traição, rancor, assassinato, abusos e tantas outras coisas assolam a mente de muitos seres humanos e graças a isso, a escuridão cresce cada vez mais. É claro que não podemos generalizar, existem pessoas boas também, mas é mais fácil e rápido fazermos o errado do que o certo. Se estamos nessa situação à culpa é nossa, exclusivamente nossa, afinal, quantas vezes deixamos de pensar no bem do próximo para pensarmos em nosso próprio umbigo? Perdi as contas de quantas vezes fiz isso.

...

De acordo com Ferraz, os demônios nascem da maldade humana, quando mais maldades acontecem ao redor do mundo, mais demônios surgem, mais almas são corrompidas, e fica cada vez mais difícil manter o equilíbrio. O que acontece se perdemos? O apocalipse é claro, o fim da humanidade como à conhecemos.

...

Hoje nós vamos abandonar a cidade, aqui não é um lugar seguro. Vamos encontrar a Ordem dos caçadores, e eu vou ter que me unir a eles. A ordem existe desde que os arcanjos passaram a lutar ao nosso lado e vem resistindo até hoje. No passado existiam as rosas purpuras, a tríade vermelha, a cidade branca e muitas outras, todas lideradas por algum caçador mestre, mas infelizmente, todas caíram. Somente a ordem continua de pé. Também existem os solitários, caçadores que preferem agir sozinhos, por motivo próprios, alguns que decidiram sair da ordem ou porque foram expulsos por ela. Esses normalmente usam métodos pouco convencionais e até meio radicais. Na ordem vou conhecer cada um deles e outros iguais a mim, aprender a lutar e utilizar meus dons.

Saí do quarto e encontrei Ferraz no quartinho dos fundos, estava parado em frente a parede de fotos e linhas coloridas, parecia estar lembrando do passado.

- Estou pronto Ferraz – Disse, mas ele não se virou. – Ferraz, o que é tudo isso?
- Isso é toda a minha história, tudo o que decora essa parede é o motivo que estou aqui hoje rapaz. – Disse. – Eu não sou como você, não nasci como você, não tenho nenhum dom especial, mas estou aqui.
- O que aconteceu? – Perguntei. – O velho sentou na cadeira com os olhos cheios de lagrimas, olhei para a mesa e percebi que estava bebendo, percebi que o motivo da casa ser cheia de latas de cervejas jogadas pelos cantos, era porque ele bebia para tentar esquecer de alguma coisa.
- Rapaz, eu nunca acreditei em Deus. Achava tudo uma baboseira, em meu pequeno discernimento, essas histórias não passavam de um romance escrito por alguém, a minha ignorância custou a vida de todos os que eu amava. – Sua voz ficou embargada. – Zombei de quem não deveria e brinquei com quem não deveria também.

- Teve uma época que me envolvi com coisas erradas, comecei a ler aquilo que não deveria ser lido, quando percebi estava brincando de fazer magias negras, evocar espíritosamaldiçoar as pessoas e o resultado foi que libertei um demônio, uma vez liberto ele destruiu minha família, minha esposa, minhas filhas. – Ele parou um momento, e tirou da carteira uma foto de uma mulher com duas crianças. Ferraz começou a chorar, sinceramente, não sabia o que dizer, nem me atrevi a perguntar como elas morreram ou o que as matou, esperei calado.  

– Esse demônio as matou da forma mais violenta possível. Após mais uma noite de brincadeiras com magias e invocações, voltei para casa. Abri a porta da sala e estava tudo quebrado, da televisão saia um chiado horrível e passava imagens estáticas. De princípio, pensei que era um assalto, meu coração disparou ao pensar nas minhas filhas, peguei a primeira coisa que vi e que poderia servir como arma, um guarda-chuva longo e pontudo. Não me preocupei com cautela, gritei o nome da minha esposa e minhas filhas, um por um, não tive resposta, corri pelo corredor e subi a escada pulando os degraus, no topo escorreguei em alguma coisa e bati a cabeça no solo de madeira, olhei com atenção e tinha sangue por todo o lugar, no desespero abri a porta do quarto de minhas filhas e elas não estavam lá, também estava coberto de sangue por todos os lados, parede, teto camas, tanto sangue... Ouvi um barulho vindo do meu quarto e da minha esposa, não pensei duas vezes, levantei e corri cegamente arrebentando a porta com o ombro. O que vi lá dentro foi a pior imagem que alguém poderia ver, e a que vai me assombrar até o dia da minha morte. Os corpos das minhas filhas estavam destroçados logo na entrada, as partes estavam jogadas por todos os cantos, cai de joelhos em completo desespero, as peguei em meu colo e tentei reanima-las, minha consciência sabia que era em vão, mas meu coração não queria acreditar nisso. – Nesse momento Ferraz chorava muito, coloquei minha mão em seu ombro, não queria que ele continuasse se torturando dessa maneira, ele não merecia isso. Mas mesmo assim, ele continuou. 

– Ouvi uma risada, e alguém falou algo indecifrável. A silhueta de uma mulher apareceu na sombra, Maria? – Chamei o nome da minha esposa. – O que você fez?  Ela não respondeu, meus olhos estavam cheios de lagrimas e não conseguia ver direito por conta da vista embaçada, levantei e limpei o rosto, quando olhei novamente consegui ver algo que não tinha visto antes, o corpo da minha esposa estava coberto de sangue, estava sem seu braço esquerdo e sem sua cabeça, gritei horrorizado, mais acima, uma criatura pendurada no canto do teto e de ponta a cabeça, me olhava com orbitas vazias e um largo sorriso enegrecido, sua pele completamente escura, com vários espinhos saindo do corpo, longos membros e longas garras em seus pés e mãos, pareciam patas de aranha de tão enormes que eram, sua enorme língua jogada no canto de sua boca, ainda pingando o sangue da minha família. Ao me ver a criatura mordeu o ombro de minha esposa arrancando um pedaço de sua carne, após largou o seu corpo e me encarou. 
O medo me fez andar para trás, tropecei na perna de minha filha e caí igual um pedaço de merda, a criatura foi descendo pela parede, com o seu dorso e rosto virados para frente, não tirava os olhos de mim. Eu seria o próximo, tateei ao lado procurando o guarda-chuva que derrubei quando entrei, não tive muito tempo de toca-lo. A criatura voou em minha direção, e com um movimento de puro reflexo misturado com ódio, acertei seu rosto com o cabo, fazendo a criatura perder o equilíbrio, mas em poucos segundos já estava em pé e sorrindo para mim novamente, corri para fora quarto do e me lancei no corredor, a criatura arrebentou o resto da porta e se espatifou na parede, me perseguiu pela parede com como quem engatinhasse de costas, mesmo naquela posição impossível, não deixava de ser rápida ou me olhar. Desci a escadas e entrei na cozinha, o espaço mais amplo da casa, procurei uma enorme faca de caça que ficava guardada no armário, mal tive tempo de pegar a faca, quando percebi a criatura já estava em cima de mim. Levei uma porrada no peito que me fez voar metade do local, bati de costas no fogão, sentindo uma dor lancinante por todo o corpo. Olhei para baixo e percebi que estava coberto por sangue, as patas da criatura cortavam como uma espada afiada, só tive tempo de deixar-me cair para o lado antes que suas afiadas patas perfurassem o fogão, como faca quente na manteiga, percebi que não havia largado a faca, encravei aquele pedaço de metal de 30 centímetros no dorso direito daquela coisa, jorrou um sangue escuro, que cobriu todo o meu rosto, sem pensar, tirei e enfiei novamente na criatura, jorrando mais sangue, ela urrou de dor, enfiou uma das garras em meu ombro direito, levantou-me com tanta facilidade, e com a mesma me jogou contra a parede. A criatura se contorcia pela cozinha, tentando tirar a faca encravada em seu corpo, ao conseguir, jogou longe, percebi que de forma quase que instantânea suas feridas passaram a ser curadas.

- Quem é você? – Balbuciei.
eduxit me et vos hic. – Disse a criatura. – venio nam prandium!


Não havia entendido o que disse ou qual linga usou, mas sabia porque estava ali, era por minha causa. A criatura aproximou o rosto do meu, não tirava aquele sorriso malicioso da cara, pensei que era o meu fim, então fechei os olhos, queria que fosse rápido.

- Não vou matar agora. Vou fazer sofrer e quando estiver no poço, sua alma pegarei.


A criatura falou em meu idioma, fiquei perplexo. Nesse momento a criatura se afastou, e bem devagar aproximou-se do canto da cozinha, encostou em uma das sombras e da mesma maneira que apareceu sumiu. Fiquei encarando aquele lugar durante alguns minutos, aquilo devia ser um sonho, tinha que ser um sonho, eu queria que fosse, mas não era. Após alguns tempo, levantei e voltei para o quarto, dessa vez não consegui entrar, fiquei ajoelhado na porta, perplexo com a imagem. Não sei quanto tempo fiquei encarando o corpo das minhas meninas, de longe ouvi um som de sirene, algum vizinho assustado com o barulho e gritos resolveu chamar a polícia. Após algum tempo ouvi som de passos pela escada.


- Parado! Parado! – Gritavam. – Mãos para cima, senhor.


Ao me verem, ficaram completamente assustados com minha aparência, um dos policiais me empurrou para o lado e entrou no quarto, só ouvi o homem gritar aterrorizado e sons de alguém vomitando. O homem saiu do quarto, olhou para mim e me chamou de monstro, a última coisa que lembro foi a imagem da sola de uma bota acertando o meu rosto. Mas tarde acordei em uma cela imunda, onde todos me chamavam de assassino, tentei contar a verdade mas ninguém acreditou, os jornais de todo o país chamavam-me de “ O esfolador”, por causa da grande comoção pública para o meu caso, fui levado a júri e com menos de 1 mês fui a julgamento, onde massacraram todas as minhas defesas, fui declarado culpado, e o júri entendeu que eu era não psicologicamente saudável, fui condenado a cumprir pena em regime fechado em um hospital psiquiátrico de alta segurança.
                Sai algemado do tribunal com destino direto ao hospital psiquiátrico, no caminho as pessoas me xingavam de monstro, assassino, demônio. Alguns diziam que eu arderia no inferno pelo crime que cometi e outros gritavam pela pena de morte, passei de cabeça baixa pela multidão de gente que era contida por uma barreira policial para que não me linchassem ou me matasse ali mesmo, ninguém acreditava em mim, até que alguém me puxou pelo ombro, virei para a direção esperando ser agredido, mas para minha surpresa, uma mulher me segurava, ela vestia uma blusa preta, cabelos castanhos claros e tinha um rosto bonito, mas seu semblante era sofrido.

                
                - Mantenha sua cabeça erguida, nós acreditamos em você, ouviu bem? Nós acreditamos em você. – Disse a mulher, antes que eu fosse puxado bruscamente para o carro de transporte.

                
                Aquilo me pegou de surpresa, mas antes que eu entrasse no carro, ouvi ela gritar novamente.

                
                - Nós acreditamos em você. – O grito dela era suprimido por todos os outros que pediam minha condenação, falsos moralistas e justiceiros que só acreditam naquilo que esta aparentemente amostra, mas não se dão o trabalho de verificar o outro lado da moeda. Mas aquelas pessoas não estavam preocupadas com o que aquela mulher gritava, apenas com a falsa impressão que eles tinham de que estavam me julgando corretamente.
                Sempre odiei esse tipo de pessoa, esses que julgam alguém sem ao menos conhecer você. Pessoas que tem um “pré-conceito” sobre alguém, sem no minimo saber sua idade seu sobrenome, seu signo ou seu prato favorito. Pessoas que apenas te olham e acham que você é o pior tipo de pessoa existente no mundo, mas dessa vez, essas pessoas sabiam ao menos o meu sobrenome. Ferraz, o homem conhecido como “O esfolador”.
                A porta traseira do furgão se fechou, a única coisa que vi foi a multidão mais alvoraçada tentando derrubar a barricada e os pobres policiais gritando palavras de ordem para aquele mar de pessoas enfurecidas.


                ...


Os dois guardas que estavam me guiando ao sanatório não paravam de caçoar da minha cara, diziam que eu iria ficar lá até morrer, que fariam experiências terríveis comigo, que abririam o meu cérebro e o usariam para treinamento dos novos psiquiatras. Aquelas palavras não me importavam em nada, só pensava na minha família massacrada, na criatura que as matou e nas palavras daquela mulher. Nós acreditamos em você! Foi o que ela disse, mas nós quem?
                Minha cabeça era uma mistura de pensamentos e meu coração uma mistura de sentimentos, o mais forte deles era a dor da perda que era acompanhada pelo sentimento de vingança em pé de igualdade. Ouvi uma batida na lateral direita do carro, logo ouviu-se outra, um grito veio da cabine do motorista, mais uma nova batida, dessa vez do teto do veículo. Os guardas gritavam desesperados, perguntavam o que era isso, o que é isso. Tentei olhar pela portinhola, mas não conseguia manter o equilíbrio.
                
                - O que está acontecendo aí, me responde droga! – Gritei antes de cair no chão do veículo.
                - Cale sua boca porra. – Gritou um policial.

De repente, ouvi tiros, um tiro, dois tiros, três tiros, alguém estava descarregando o pente de uma pistola em alguma coisa que seguia o veículo, mais uma vez fiquei desesperado, seja o que fosse, os policiais estavam contra-atacando. Pega a escopeta, um deles gritou.
Um barulho alto como se fosse um trovão, soou dentro do veículo, mais tiros sequenciados vindos da cabine.

- É muito rápido, não consigo mirar. – Gritou um guarde.
                - Senta na janela e atira por cima do capô. – Gritou o motorista.

                Não conseguia acompanhar toda a ação, percebi que o guarda que havia projetado seu corpo para fora, estava atirando em todas as direções. O que é que fosse nosso perseguidor era rápido. De repente algo pesado caiu no teto do veículo, ouvi mais uma sequência de tiros e em seguida o grito do policial, percebi que esse começou a se debater dentro da cabine, o policial tentava pedir ajuda, mas seu grito de socorro parecia estar se afogando goela abaixo, o motorista em desespero tentou segurar as pernas do seu amigo, mas era tarde demais, em segundos o policial foi arrancando do interior do veículo igual a um boneco de pano, seu companheiro gritava igual um louco.

                - Se acalma cara, se acalma, você vai perder o controle do veículo e nós vamos morrer também.
                - Eles estão em todos os lados, nós vamos morrer, nós vamos morrer. – Gritava o guarda. – Em um momento de insanidade o homem começou a gargalhar como se assistisse a peça mais engraçada do mundo. Nesse momento já não queria saber o que estava acontecendo, o que estava nos perseguindo, em minha mente vinha somente uma vontade, sobreviver.

                Ouvi um barulho na traseira do veículo, olhei para trás e percebi que vinha da porta. Encostei minhas costas na parede que separava a cabine do motorista e o fundo, mais uma batida forte e outra e outra. A porta era puxada com violência, pela força não tinha como aguentar. Após mais alguns puxões, a porta for arrancada com dobradiça e tudo, durante alguns segundos fiquei encarando o asfalto que passava em alta velocidade, até que uma criatura negra de pelos ouriçados pulou no fundo do furgão. Caí de bunda, incrédulo com o que estava vendo, a criatura levantou a cabeça e consegui perceber toda a sua dimensão, um lobo totalmente negro, olhos vermelhos sangue, respiração pesada, pelos selvagens e oiriçados, dentes arreganhados e rosnando na minha direção, o animal ocupou todo o espaço do fundo do furgão, não tinha maneira alguma de escapar. A criatura rosnava em minha direção, baba pingava entre suas pressas empapando o chão.

                Levantei até a portinhola e gritei pelo policial, esse estava tão enlouquecido que sequer ouvia meus gritos, foi nesse instante que tudo mudou repentinamente, o motorista foi arrancado pela janela e lançado na escuridão, o veículo ficou sem controle, olhei para o volante sem poder fazer nada e vi o momento que o furgão voou pelo acostamento, no reflexo olhei para trás procurando no que pudesse me agarrar, o lobo já não estava no veículo, apenas a porta aberta. Em segundos o veículo caiu uma pequena ribanceira, capotando diversas vezes, tentei manter-me firme o máximo possível, mas algo completamente impossível para as minhas forças naquela situação, em algum momento bati a cabeça e vi tudo escurecer. 
                Não sei por quanto tempo fiquei apagado, acordei com uma dor de cabeça terrível, algo denso e quente escorria por meu rosto, sangue. Encostei na lateral do veículo tentando me acalmar, meu ombro direito estava deslocado, braço esquerdo quebrado com uma fratura exposta e eu ainda estava algemado. Levantei com dificuldade e sai do veículo, ao virar e olhar percebi que tive sorte em ter um ombro deslocado e apenas um braço quebrado, o furgão estava todo arrebentado devido à queda, em outras circunstâncias, não teria acreditado que alguém sobreviveria aquilo. Olhei em volta e não vi o lobo, segui o rastro de destruição até chegar a pista. Olhei para ambos os lados e não vi uma alma viva, nenhum sinal de casas por perto ou algo parecido, cambaleei a pista até um pouco depois do lugar do acidente, eu tinha que encontrar o motorista para recuperar a chave da algema, andei durante alguns metros até que vi o primeiro indicio. 
                Havia um baque de sangue, acredito que era o lugar onde o motorista caiu quando foi arrancado pela janela, olhei com mais atenção e vi um rastro de sangue, ou o infeliz sobreviveu a queda e saiu se arrastando ou foi arrastado até não seu onde, não podia pensar muito e eu precisava da chave. O Rastro se estendeu por volta de dez metros da poça, descendo o acostamento lateral da pista, com muita dificuldade desci, um pouco mais e encontrei o pobre infeliz. Ele estava todo estraçalhado, suas entranhas para fora, o intestino delgado espalhado ao seu redor, estava sem um dos braços e a perna direita só um cotoco até o joelho. Acho que ele lutou até o último instante, afastei esses pensamentos da mente e me aproximei do cadáver, ajoelhei ao seu lado e não pude evitar de sentir pena, o homem estava irreconhecível. Engoli a ânsia de vomito e comecei a procurar as chaves nos bolsos da calça, não encontrei nada. Se elas não estivessem com ele e sim com o outro policial? O desespero bateu por todo o meu corpo, não sabia a que distancia o outro estava e se estava no mesmo estado que esse ou pior, quase desistindo, olhei no bolso de sua camisa azul, para minha surpresa a encontrei. 
                Abri a algema com muita dificuldade, a primeira coisa que fiz fui tentar colocar meu ombro no lugar. Me aproximei da arvore onde estava o policial morto e respirei fundo, bati com meu ombro direito na arvore, a dor foi insuportável, mas eu precisava recolocar o ombro, não consegui na primeira vez, respirei fundo e tentei novamente e nada, a dor era tanta que pensei que desmaiaria novamente, tentei pela terceira vez, dessa vez respirei fundo, contei a até três e investi com força mais uma vez contra a arvore, escutei um “trec” e senti que o tinha encaixado novamente, cai no chão sentindo muita dor. Após alguns segundos, voltei ao guarda, precisava fazer uma tipoia para meu braço quebrado, não havia nada com o guarda que eu pudesse usar , as roupas estavam todas rasgadas e eu não conseguiria tirar minha camisa para fazer uma tipoia com ela, meu braço direito estava inchado de tal maneira que não conseguiria ergue-lo acima da cabeça e o esquerdo quebrado, seria impossível. Olhei para as botas do homem e vi as únicas coisas que poderiam me ajudar nesse momento, com apenas um braço, consegui tirar os dois cadarços, os uni usando minha boca como auxilio, fiz uma ponta tipo laço, arranquei um pedaço da manga do policial e passei pelo meu punho e osso fraturado, joguei a ponta por cima do pescoço e com dificuldade a peguei e por fim, amarrei tomando a precaução de não deixar apertado e prendesse a minha circulação.
                Antes de sair, olhei para o homem e não pude deixar de pensar na sua família que ficaria desamparada e rezei por eles. Percebi que havia um cabo saindo de sua bota direita e ao puxa-lo encontrei um revólver calibre 22, era pesado, percebi que devia estar carregado, não entendia nada de armas, mas já havia visto várias desse tipo em filmes, para mim era só engatilhar e atirar, simples assim. Coloquei por trás na barra da calça e subi a colina, tinha que sair dali o mais rápido possível, não poderia esperar outros policiais ou que os lobos voltassem, essa também era minha única oportunidade de me vingar.
                Ao chegar na pista ouvi o som de um carro, meu primeiro impulso foi pedir ajuda, mas logo minha razão voltou a prevalecer, quem ajudaria um cara ferido com roupa de presidiário? Me abaixei e deixei o carro passar, com sorte quem estivesse dirigindo não veria o sangue e passaria direto até o local do acidente, seria tempo suficiente de ir na direção contraria. O Carro passou e não me viu, esperei mais alguns minutos e não o vi voltar e nenhum outro passar, levantei e fui até metade da pista, aconteceu como eu havia pensado, quem estava dirigindo havia percebido o lugar do acidente e parou para tentar ajudar, a porta do veículo estava aberta e eu não conseguia ver se ele estava dentro ou não, presumi que não. Tentei correr pelo acostamento para o mais longe possível, mas no meu atual estado era quase impossível. Após me distanciar uns quinze metros do corpo e uns trinta ou quarenta metros do furgão, ouvi um uivo, um uivo não, eram vários uivos. Não tinha como saber de qual lado era oriundo aqueles sons, fiz a única coisa logica que me veio à mente, fiquei parado no meio da pista, seja o que fosse, conseguiria ver de ambos os lados antes de me atacarem. Um grito feminino cortou o ar, após alguns segundos ouvi uma sequência de tiros, vinham da direção do carro, além da pessoa estar armada, também era uma mulher. O clima ficou pesado, não ouvi mais nada nos minutos seguintes, armada ou não, provavelmente estava morta. Antes que eu pudesse pensar em ir ajudar ou correr para me salvar, senti um rosnado vindo por trás de mim, me virei e vi um imenso lobo, era negro e olhos vermelhos, a criatura era imensa, bem maior do que a que eu tinha visto antes do acidente, na verdade, esse praticamente tinha o tamanho do próprio furgão. O lobo negro uivou, em seguida vários outros uivos soaram como resposta, em poucos segundos uma alcateia saiu por todos os lados, eu estava cercado.
                O lobo maior, começou a andar em minha direção, como se fosse automático, os outros começaram a segui-lo, a única coisa que podia fazer era andar para trás com todo o cuidado para não fazer nenhum tipo de movimento brusco, esse com certeza era o alfa do grupo, pude deduzir isso não por conta do seu tamanho que com toda a certeza era o maior, mas pelo seu comportamento. O alfa, parou de repente e olhou para trás do seu grupo, com um leve rosnar e um curto latido, um lobo menor pareceu responder o chamado, esse era pequeno e menor que os outros, um pouco mais magro também, percebi que era o ômega. 
                Ele era menor, mas não menos perigoso do que os outros, talvez fosse o mais assustador depois do líder, o ômega rosnou em minha direção e olhou para o alfa, esse deu outro latido e fez com que o ômega avançasse em minha direção, poucos metros nos separavam e mesmo que tentasse não conseguiria correr, minhas pernas estavam paralisadas. lembrei-me da arma, puxei da cintura e mirei na criatura, puxei o gatilho e nada, não havia engatilhado a bala e em uma rápida segunda tentativa, engatilhei e atirei, o coice da arma não foi grande, mas no meu estado atual até um sopro me derrubaria, fui ao chão. Uivos passaram a ecoar o ar, olhei o lobo e percebi que eu havia acertado o seu olho esquerdo, a criatura chiava, se debatia e fazia sons que não conseguiria descrever, atirei mais duas vezes mas a criatura praticamente desviou dos tiros, quando ela me encarou, percebi ódio em seu olhar. Eu estava perdido, a criatura voou em minha direção, suas presas amostra, eu iria morrer ali, em um ato de piedade, medo ou talvez covardia, já não sei dizer, engatilhei a arma e encostei na têmpora da minha cabeça. Mais antes de puxar o gatilho, ouvi mais três tiros, o primeiro acertou em cheio o dorso do lobo e ele conseguiu se esquivar dos outros dois, a criatura tombou de lado e começou a rolar no chão como se tentasse apagar um fogo que possuísse o seu corpo. Uma mão me segurou pelo ombro e me fez levantar.
                
                - Levanta agora. – Gritou uma mulher.
               
Eu estava tão surpreso com tudo que não havia raciocinado direito, uma mulher tinha acabado de salvar a minha vida. Olhei para trás e percebi que seu carro estava parado a poucos metros, fiquei com tanto medo que não percebi sua aproximação, havia uma possibilidade de sobreviver, corri em direção ao carro com a mulher em seguida. O lobo alfa não iria nos deixar escapar, em segundos ele pulo por cima do ômega que ainda estava caído e correu em nossa direção, ela se virou e deu mais dois tiros, não acertou o lobo, mas esse perdeu velocidade e compasso ao se esquivar dos tiros, tempo suficiente para entrarmos nos carro.
                Me joguei para dentro do carro, pulando direto o banco do motorista para o do passageiro, a moça entrou logo em seguida, batendo a porta com força. Ela tentou ligar o carro, mas o motor não pegou de imediato, o lobo alfa investiu com toda a força na lateral, por um segundo o carro levantou e ficou suspenso em apenas duas rodas, pensei que o carro ia virar, mas nesse instante o motor pegou e a mulher acelerou o veículo, fazendo com recuperasse o equilíbrio. A mulher pisou fundo no acelerador, em instantes o carro passou de zero a sessenta, a mulher trocava as marchas com tanta facilidade que mal dava para sentir o momento que o carro pedia para troca. Olhei pelo retrovisor o lobo estava ao nosso encalço, não só ele, mas toda alcateia, imaginei como iriamos fugir, eles eram rápidos de mais. O lobo estava a poucos centímetros da traseira do veículo, mas em um momento magnifico de inteligência, a mulher puxou o freio de mão, nessa distancia o lobo não tinha como desviar. O baque foi imenso, o lobo voou por cima do carro e caiu a uns dez metros de distância. Mais uma vez a mulher acelerou, antes que o lobo pudesse levantar ela bateu com a frente do veículo na enorme cabeça do lobo alfa, ouvi com clareza o som de ossos e carne se rompendo, a mulher mais uma vez acelerou e seguiu em frente, olhei para trás e vi o lobo caído ao chão, os outros se aproximaram e começaram a cheirar o seu líder. Antes de os perder de vista, consegui identificar o ômega chegando perto do seu líder tombado e em seguida uivando, todos uivaram como resposta. Mesmo tendo escapado, sabia que não iria terminar assim.

                Virei para a mulher e finalmente prestei atenção em seu rosto, era a mesma que vi quando sai do tribunal, a mesma que disse que acreditava em mim e pela segunda vez me puxou pelo ombro

                - Quem é você? – Perguntei.
                - Sou a pessoa que acabou de salvar sua vida. – Disse sem ao menos olhar a minha cara.
                - Obrigado por isso. – disse amargamente. – Mas o que eu quero saber é quem é você... qual seu nome?
                - Rosangela. – Ela respondeu.

                ...

                Não conseguia acreditar no que Ferraz estava me contando, esse homem que salvou minha vida era mais misterioso do que eu imaginei, será que todos passaram por algum tipo de tragédia para chegar aqui?

                
                - Ferraz, eu sinto muito por isso, mas eu nunca fiquei sabendo dessa história.  Como tudo isso não saiu no jornal?

                
                Ferraz deu uma risada irônica.
                
                - Não teria como você saber disse garoto. Eu era apenas alguns anos mais velho do que você quando tudo isso aconteceu.
                - Isso ocorreu a quanto tempo? – Perguntei. – Nunca vi nada parecido na internet ou fóruns.
                - Faz mais ou menos quarenta anos, não existia internet no meu tempo, celulares, fóruns ou qualquer outra forma para se propagar ou de manter a longo prazo. – Disse. – Provável que alguns espalharam para outros e esses por diante, mas com os anos logo foi esquecido. – Disse o velho. – Além do mais, as autoridades abafaram o caso, quem acreditaria que eu fugi algemado do furgão policial, deixando-o completamente destruído, com marcas de mordidas e enormes arranhões por todo o veículo, deixando também um policial desaparecido e outro completamente devorado na estrada, no mínimo eles teriam que admitir a verdade ou dizer a todos que eu havia me transformado em um animal e matado os guardas.

                - Faz sentido. – Respondi. – Essa mulher, Rosangela? Ela ainda está viva?
                - Sim, esta sim. – Respondeu. – Ela me levou para a ordem, me treinou como podia e graças a ela estou aqui hoje, mas isso é assunto para outra conversa e não temos mais tempo a perder.

                Ferraz levantou, olhou em volta e saiu do quarto.

                - Vamos garoto, a estrada e longa e temos pouco tempo. – Disse em um tom melancólico.

               
                 Quinze minutos depois, estávamos fora da casa. Ferraz se aproximou como quem fosse se despedir, abriu uma garrafa de Whisky e tomou dois ou três goles. Tirou um lenço fino do bolso da blusa e limpou a boca, após molhou o lenço com a bebida e fechou a garrafa com alguma coisa que não consegui identificar, acendeu o pano e jogou. Em pouco tempo o fogo se alastrou na frente da casa, era um festival de chamas. Ferraz olhou mais algum tempo e entrou no carro.


                - Não podemos deixar nada para trás, nada. – Disse.